Em conversa familiar, discutíamos acerca da noção de infinito, como seria possível apreendermos o seu sentido empiricamente, uma vez que estamos circunscritos a percepções finitas? Veio-me à mente, então, em uma tentativa de aproximação, o caminho que percorremos na aquisição do saber, o qual nos leva sempre a novos caminhos, a novas descobertas, em um movimento contínuo e infindável que relativiza o conhecimento já adquirido. Tal movimento faz-nos perceber quão pouco sabemos, à medida que avançamos nessa viagem maravilhosa e espantosa. O difundido preceito atribuído a Sócrates, “só sei que nada sei”, reverbera esta sensação, a de que quanto mais estudamos, mais temos a aprender, novos mundos se abrem, emulando-nos, convidando-nos a continuar a seguir rumo a novas paragens, sempre com um gostinho de ‘quero mais’.
Quem já não ouviu falar de Hesíodo, poeta da Teogonia, poema que trata da origem do Universo e dos deuses, ou de Homero, a quem são atribuídos os poemas épicos Ilíada e Odisseia, cujas narrativas retratam cenas em que atuam deusas, deuses, heróis, rainhas, príncipes e princesas? Além de nos permitir ter contato com um contexto riquíssimo quanto a costumes e crenças de uma determinada época. Tal riqueza se expande quando temos a oportunidade de ver e de apreciar sua representação em obras como pinturas e esculturas, acervo, dentre outros, os quais os museus europeus nos oferecem, a exemplo do Musée d'Orsay, em Paris.
Ao visitá-lo, passeando por suas alas largas e deleitantes, deparamo-nos com nomes consagrados como Renoir, Cézanne, Manet, Monet, Van Gogh, cujas obras fascinam por sua riqueza tanto temática quanto artística, como também embelezam o ambiente. No entanto, atemo-nos, especificamente, a dois quadros, Naissance de Vénus, de Alexandre Cabanel, e Naissance de Vénus, de William Bouguereau, que trazem uma cena da Teogonia, de Hesíodo, versos 188-206, escolhidos por nós para este artigo, por nos tocarem particularmente, uma vez que retratam uma das mais belas cenas da mitologia grega, o Nascimento de Afrodite.
Os genitais, primeiro tendo sido cortados com adamanto,
lançou para baixo, do continente sobre o agitado mar,
assim carrega-o o mar por muito tempo e, ao redor, branca
espuma da imortal carne se lançava, e, nela, uma jovem
foi criada. Primeiro da venerável Citera se aproximou,
então de lá chegou a Chipre cercada de água.
E saiu veneranda bela deusa, e ao redor relva crescia
sob os delicados pés. E ela, Afrodite,
deusa nascida das espumas e bem-coroada Citereia
denominam deuses e também varões, porque na espuma
foi criada: Citereia, pois alcançou Citera,
Cípria, pois nasceu em Chipre cercada de água,
e a que ama o pênis, pois veio do pênis à luz.
Eros a acompanhou, e Desejo a seguiu, belo.
Nascendo, primeiramente vai à tribo dos deuses,
esta honra, desde o início, tem e obteve
o quinhão entre homens e deuses imortais,
conversas de moças, sorrisos, enganos,
prazer, doce amor e meiguice.
— Tradução nossa —
A Teogonia narra, dentre outros episódios, o nascimento da deusa Afrodite, assimilada a Vênus na tradição latina. Hesíodo, em versos hexâmetros, discorre acerca de como a deusa surgiu das espumas do mar, formadas a partir do sêmen ejaculado do pênis de Urano, o Céu, após ter seus órgãos genitais decepados por Cronos, seu filho, a pedido da mãe. Em coito contínuo, à noite, pois a diferenciação entre dia e noite já havia ocorrido, Urano permanecia constantemente sobre Gaia, a Terra, procriando ininterruptamente. No entanto, com o seu peso, mantinha os filhos aprisionados dentro do ventre dela, de modo a os impedir de vir à luz, evitando, assim, o cumprimento do oráculo que dizia ser ele, um dia, destronado por um de seus filhos. Assim, o mar, antes infecundo, é fertilizado com o sêmen de Urano, o que faz surgir espumas das quais é gerada Afrodite, que promoverá a vida com sua força fecundadora. Com a deusa, surgem Eros e Desejo, divindades que a auxiliarão em sua ação amorosa e erótica sobre deuses e mortais.
Assim, quando nos deparamos com o referido episódio representado no quadro de Alexandre Cabanel, Naissance de Vénus, de 1863, retratando um recorte da narrativa hesiódica da qual estamos imbuídos e que pertence a um contexto maior dentro do entrelaçamento poético, aguçamos a nossa percepção para o que foi recortado da narrativa poética. Não apenas pela lente de aumento que a captura particular e instantânea da arte pictórica nos proporciona, cativando-nos o olhar, mas também pelas cores e traçados que delineiam a cena escolhida.
Logo que estamos diante do quadro, é impossível não reconhecer a deusa cuja beleza e poder de sedução fizeram-na ser a escolhida no julgamento do monte Ida, em Troia, como a deusa mais bela, na disputa com as deusas Atena e Hera, capaz de provocar a guerra entre gregos e troianos. Mas o que nos chama mais a atenção é a harmonia da significância, o perfeito casamento entre o sentido simbólico de Afrodite e as linhas que contornam a pintura. O dia claro é prenúncio da sua plenitude, como deusa cuja função é garantir a continuidade da existência, ela é dadora da vida. A sinuosidade do seu corpo, com a ondulação das águas do mar, remete-nos à sua ação sedutora, como promovedora do amor. Deitada languidamente sobre as espumas de onde proveio, parece estar em repouso. Com os braços jogados para trás e o dorso de uma das mãos sobre a testa, escondendo parcialmente os seus olhos semicerrados, ela olha para os Amores, séquito que sempre a acompanha, os quais a aclamam soprando os búzios, parecendo convocá-la à vida da qual é regente. Ao longe, no horizonte, é possível vermos o que parece ser uma ilha, Citera, provavelmente, primeira terra que a recebeu, por isso seu epíteto, Citereia.
William Bouguereau, cuja obra, de 1879, também é intitulada Naissance de Vénus, mostra uma Afrodite não menos sedutora. Ele acrescenta, no entanto, alguns elementos que não se encontram na narrativa hesiódica, mas fazem parte do contexto de Afrodite, pois tendo nascido do mar, ela é reverenciada pelos Tritões tocando búzio, divindades do séquito de Poseidon, Netuno na tradição latina, deus dos mares e das rochas, pelas Nereidas, ninfas do mar, e pelos golfinhos, animal símbolo das águas, fonte da vida. Em cima de um deles, estão Eros e Desejo, também presentes no quadro de Cabanel, assim como os Amores. Todos a olham, admirando a sua beleza curvilínea. A concha sobre a qual ela se encontra, simboliza a sua feminilidade, em contraponto com o pênis do qual ela nasceu, membro fálico, denotador do seu poder fertilizador. Se em Cabanel temos a predominância de cores claras, em Bouguereau, o escuro e o claro se complementam, mostrando a atuação, o poder e a influência de Afrodite desde o mundo ctônico até o éter.
Não sendo especialistas na arte pictórica, admiramos, no entanto, a expressão artística transmudada. No mito que se encontra na tradição, emoldurado no fazer poético literário, vemos a fonte de inspiração para outras criações artísticas, cujas peculiaridades somam valores ao já conhecido, assim expandindo as possibilidades de percepção e de apreciação do belo. Nesse sentido, sentimo-nos emulados, mas também um tanto angustiados pelo fato de que, quanto mais descobrimos acerca do conhecimento, mais percebemos o quanto temos a aprender, o que relativiza aquilo que já sabemos. Trata-se, no entanto, de uma angústia boa, instigadora de novos encontros que nos remetem à noção de infinito. Afinal, em que momento da vida, de fato, começamos a construir nosso saber? E quando termina? São questões que nos levam a pensar...