Costumo brincar com os meus alunos das disciplinas de Estudos Clássicos, contando-lhes a essência de um mito e perguntando-lhes de quem estou falando. Como as várias culturas mediterrâneas e suas vizinhanças se interpenetram, existe na bacia do Mediterrâneo um verdadeiro cadinho cultural, com narrativas muito semelhantes em suas estruturas. Entenda-se pelo termo narrativa o seu sentido grego, contido na palavra mito (μῦθος), que chegou até os nossos dias um tanto distorcido, significando, o mais das vezes, mentira.
O mito, na sua origem, era utilizado, quotidianamente, com a acepção de uma verdade possível. Já na representação literária, o mito é alegoria, é lição, é advertência. Em todos os casos, o cerne cultural de um povo.
Para que entendamos melhor o sentido de mito como narrativa, resumo aqui um dos desafios lançados aos meus alunos:
“Um mortal é testado por uma divindade, tendo que sacrificar uma criança sua, para mostrar a sua submissão e a aceitação da vontade divina. Na hora destinada, a criança é substituída por um animal, que é sacrificado em seu lugar. De quem estou falando?”
Deixando de lado os alheios à tradição cultural, alguns não titubeiam em se reportar à história bíblica de Abraão e Isaac. Para a surpresa de todos, eu respondo que estou me referindo ao mito de Agamêmnon e Ifigênia. Assim, como este, muitos outros mitos apresentam estruturas semelhantes – veja-se, por exemplo, o paralelo entre Jesus e Hércules –, tomando, contudo, caminhos diferentes, de acordo com as necessidades da religiosidade e da cultura de cada povo.
Voltando ao mito de Agamêmnon e Ifigênia, cuja narrativa mais completa se encontra na tragédia Ifigênia em Áulis e na sua continuação Ifigênia em Táuris, ambas de Eurípides, surpreendi-me quando vi, no Salão de Diana do Château de Versailles, uma tela retratando o sacrifício de Ifigênia. A surpresa não se deu pelo mito em si, dada a abundância dos temas clássicos em todo o castelo, construído por Luís XIV, o Rei-Sol, em cujo jardim se pode ver, por exemplo, no Bassin du char d'Apollon, a magnífica escultura de Jean-Jacques Clérion representando Apolo dando de beber aos cavalos do Sol. A surpresa se deu pela maneira como o episódio é retratado. Relembremos o mito.
O Atrida Agamêmnon, senhor dos Argivos, encontra-se em Áulis, esperando o ajuntamento das tropas para seguir em direção a Troia. Enquanto aguarda, ele resolve fazer uma caçada no bosque sagrado de Ártemis – de quem os romanos tiraram a sua Diana –, mata uma corça e ainda se vangloria do feito. A deusa se vinga, negando os ventos necessários à partida da frota Argiva. Tendo consultados Calcas, o sacerdote de Apolo e oniromante, que acompanha os Argivos, ele diz que a deusa exige, como reparação à hybris (ὕβρις) cometida, uma oferenda que a satisfaça. Como se trata de uma deusa do mundo selvagem, caçadora e senhora dos animais (πότνια θηρῶν), segundo o epíteto homérico, Agamêmnon se compromete em lhe consagrar o melhor fruto de suas primícias. Ártemis aceita, mas o que o Atrida não sabe é que há um ruído entre o que ele oferta e o que a deusa aceita. Este é um dos motivos para Agamêmnon chamar Calcas, no Canto I da Ilíada, de profeta de males (μάντι κακῶν), por só lhe trazer soluções ruins, como a devolução de Criseida ao pai e a oferenda de uma hecatombe ao deus Apolo, por causa da afronta do poderoso Atrida a Crises, pai da moça, representante do deus e em cujo nome falara, na tentativa de reaver a filha das suas mãos.
O ruído na comunicação Agamêmnon-Calcas-Ártemis consiste no fato de que o Atrida pensou em ofertar uma bela novilha, mas a deusa pensou em sua bela filha Ifigênia... Promessa feita não pode ser quebrada, vale tanto para os mortais, quanto para os deuses.
Agamêmnon não tem alternativa a não ser dar a filha em sacrifício. O problema é como fazer para convencer a filha viajar de Argos a Áulis, de boa vontade, para ser morta. Ele inventa, então, um casamento dela com Aquiles, à revelia do herói, que nada sabe do estratagema. Só ao chegar em Áulis, acompanhada da mãe, Clitemnestra, é que Ifigênia sabe que ali se encontra para ser dada em sacrifício à deusa Ártemis, não para casar com o maior herói, o melhor dos Aqueus (ἄριστος Ἀχαιῶν), ainda no dizer de Homero.
A indignação atinge Ifigênia, tanto quanto Clitemnestra e Aquiles. Aqui se explicam, pelas mãos de Eurípides, as origens das desavenças entre o Pelida e Agamêmnon, conforme veremos no Canto I da Ilíada, e o ódio de Clitemnestra contra o marido, que a levará a matá-lo, no seu retorno a Argos, uma vez terminada a guerra contra Troia. Assassinato que se poderá constatar no Canto XI da Odisseia e na peça de Ésquilo, Agamêmnon, a primeira da trilogia Oresteia.
Ifigênia, que reluta inicialmente a se entregar ao sacrifício, termina por ceder à manipulação do pai, que evoca razões pan-helênicas – em lugar de Argivos ou Aqueus, termos homéricos, para designar o exército de coalizão, na peça já se usa o termo Helenos –, na luta contra o bárbaro raptor de mulheres. O que aconteceu com Helena, se não for vingado, acontecerá mais tarde com todas as mulheres do mundo helênico ou pan-helênico. A jovem, convencida pelas artimanhas do pai, caminha para o sacrifício, mas, na hora da morte, a deusa a substitui por uma corça. Apesar do relato do arauto, para todos, ela morreu, principalmente para a mãe, Clitemnestra, quando, na realidade, Ifigênia foi arrebatada e levada a Táuris, para servir como sacerdotisa de Ártemis.
Como se pode ver, as duas narrativas, a helênica e a hebraica, se imbricam e apresentam estruturas semelhantes, vergando-se às mudanças necessárias aos interesses de cada cultura e, claro, das intenções de cada narrativa. A hebraica se quer como uma verdade fundante, narrando a origem de sua religião e de como surgiram os seus patriarcas. A narrativa helênica se apresenta, de modo inquestionável, como mímesis (μίμησις), uma representação de uma possibilidade, como bem o diz Aristóteles. Sendo uma peça de teatro, que se caracteriza pelo trágico, Ifigênia em Áulis retoma o mito tradicional, que se encontrava na oralidade, e o fixa, tornando-o canônico, e, ao mesmo tempo, recriando-o como atemporal, de modo a levar lições ao espectador.
Conforme já nos referimos, a tela no Château de Versailles despertou a minha atenção – não a tinha visto, das outras vezes em que visitei o castelo –, pelo modo como o seu autor retratou o mito. O quadro se chama O sacrifício de Ifigênia, da autoria de Charles de La Fosse e datado de 1712, período clássico, portanto. O artista retrata o episódio de maneira sincrética, misturando ao elemento clássico a tradição hebraica. Descrevamos a cena: vemos em primeiro plano, a figura rechonchuda e branca de Ifigênia, com o seio esquerdo desnudo e a garganta à mostra, pronta para o sacrifício, tendo acima dela a deusa Ártemis, com os seios expostos, mas num jogo furtivo de mostrar e esconder, dada a posição de lado, em que ela se encontra, e o movimento do braço estendido em direção a um personagem idoso, abaixo de quem se distingue um arauto portando o vaso com a água lustral, necessária ao sacrifício. A deusa está devidamente paramentada com o seu arco e a aljava cheia de flechas, atributos da sua condição de caçadora; na cabeça a meia-lua, representando o bicorne do crescente, simbiose da divindade com a lua, trazendo a corça, para tomar o lugar da jovem.
O personagem a quem a deusa estende a mão é Calcas, o sacerdote de Apolo, cuja cabeça recoberta e cuja longa barba são mais condizentes com os modos hebraicos do que com os helênicos. A sua maneira de vestir-se, usando uma túnica em lugar dos paramentos do deus a quem ele serve, remete mais a Abraão do que a um sacerdote e profeta de Apolo. Nota-se um certo espanto em suas feições, que o leva a deixar cair a faca sacrificial (φάσγανον) aos pés de Ifigênia, ao ver-se diante da deusa e da corça que substituirá a jovem. Ainda aos pés de Ifigênia, do lado direito, podemos ver Agamêmnon, em atitude chorosa, destituído de sua grandeza de Senhor dos Heróis (ἄναξ ἀνδρῶν), de costas para a filha que, de modo solerte, enganara, em proveito dos seus interesses conquistadores. Não fosse a capa vermelha sobre os ombros, visão propositadamente dificultada pelo sombreamento da cena, poderíamos, pelas vestes pouco condizentes ao grande senhor, dizer ser um pastor.
O quadro composto numa alternância entre a claridade e a sombra, mostra Ifigênia e Ártemis/Diana, na claridade aberta entre as nuvens escuras, enquanto os demais personagens estão na sombra. As nuvens escuras que se mantêm acima de Calcas apresentam um aspecto sombrio, não condizente com o sacrifício, tendo em vista que, de acordo com o mito, ele foi aceito pela divindade. Uma vez tendo sido aceito o sacrifício, o clima e os ventos se tornarão favoráveis, soprando as naus, com a proteção divina, em direção a Troia. As nuvens escuras não podem, portanto, se referir à formação dos ventos, que haviam sido sequestrados pela deusa, como punição ao descomedimento de Agamêmnon. Do modo como foram representadas, as nuvens se ajustam mais a uma situação funesta, talvez numa referência a fatos futuros como o assassinato de Agamêmnon, o que se encontra na ironia final do Corifeu, na peça já citada, aludindo a uma volta feliz de guerreiro vitorioso a Argos, ou a cenas das punições hebraicas, originadas da ira divina.
Na nossa visão, orientada de acordo com o que conhecemos a respeito de Ifigênia, na tragédia de Eurípides, o pintor Charles de La Fosse soube captar bem o que o mito tem de diverso na sua estrutura, atendendo aos anseios das duas culturas, a helênica e a hebraica. Não temos como avaliar se o sincretismo detectado por nós no quadro é produto de uma vontade, originário da permanência da cultura judaico-cristão no ocidente, ou se é a força da criação artística, levando o artista para caminhos não pensados por ele, mas sedimentados na sua mente. O nosso objetivo não é fechar uma questão, mas expor uma visão provocada pela estesia, por isso mesmo e para que a questão continue suscitando novos olhares interpretativos, ressaltamos um detalhe no entorno da tela. É interessante notar que um episódio clássico dos mais conhecidos apresente, na base do quadro que o emoldura, uma cena em baixo-relevo que sugere a fuga de Nossa Senhora para o Egito, tendo a proteção de dois anjos.