Na imensa obra de Honoré de Balzac, A Comédia Humana , título emulado de A Divina Comédia de Dante Alighieri, encontramos algumas peq...

Há mais Grassou do que Lantier ou da aflição pelo reconhecimento

Na imensa obra de Honoré de Balzac, A Comédia Humana, título emulado de A Divina Comédia de Dante Alighieri, encontramos algumas pequenas pérolas que passam, muitas vezes, despercebidas pelos seus leitores ou são menos votadas, diante do sucesso de Le Père Goriot, La Femme de trente ans, Les illusions perdues, Eugénie Grandet, La peau de Chagrin, entre outros. É o caso do conto Pierre Grassou, publicado em 1839, integrando a série Cenas da Vida Parisiense.

O fenômeno literário é interessante e surpreendente. Muitas vezes, uma obra esquecida é posta novamente no circuito literário ao ser redescoberta por um crítico ou por uma circunstância específica que a faz novamente circular. Outra vezes, pelo fato de que há uma outra obra que se lhe assemelha em estrutura, as comparações que se fazem entre as duas darão uma sobrevida àquela obra anterior deixada de lado, mesmo não havendo, na nova obra, a intencionalidade de trazer a anterior de volta. É o caso de L’Oeuvre, de Émile Zola, publicada em 1866, um dos grandes destaques da série Les Rougon-Macquart, romance que se volta para o mundo da arte, mas especificamente, da pintura, ainda que se circunscreva num contexto maior, envolvendo a literatura. Ao conhecedor destas duas obras, uma comparação se impõe naturalmente.

É claro que o espaço não permite que façamos uma comparação mais alongada. Por outro lado, não temos a intenção de exaurir os textos nos detalhes comparativos que os tornam semelhantes ou naquilo em que eles se distanciam. O resultado disso seria um trabalho longo, de caráter acadêmico, de que resolvemos nos distanciar o máximo possível, para dar vazão a textos mais concisos, que toquem a essência das obras lidas ou que se atenham a detalhes estruturantes. Eis, portanto, a intenção desta comparação: apontar algumas semelhanças estruturais, bem com as suas diferenças, de modo a realçar a inventividade, que existe na criação,
e a mediocridade da cópia ou do plágio, ou da obra sem qualquer expressividade.

Para Zola, Balzac “escreveu a obra mais revolucionária, uma obra em que, sobre as ruínas de uma sociedade podre, a democracia cresce e se afirma” (“Balzac lu et relu par les écrivains et les critiques”. In: La Comédie Humaine: Facino Cane, Pierre Grassou, La cousine Bette, Le cousin Pons, Une ténébreuse affaire, Les Chouans. Paris, Omnibus, 2011, vol. 3, p. 1122, em tradução nossa). Não apenas isto, Balzac “fundou nosso romance atual, na mais grandiosa, na mais fremente das produções”, passando “por todos os extremos, da fé à ciência, do romantismo ao naturalismo”, sendo “o primeiro a ter afirmado a ação decisiva do meio sobre o personagem” levando “ao romance os métodos de observação e de experimentação”. “Gênio do século”, Zola o considera “o operário prodigioso que lançou as bases deste monumento das letras modernas” (idem, p. 1123).

Tendo conhecido, pois, a obra de Balzac, Émile Zola, de modo intencional ou não, retoma o tema da arte e do artista insatisfeito, mas reinventando o personagem Pierre Grassou de Fougères – este último nome, pelo qual ele era mais conhecido, foi acrescentado, em homenagem ao local onde nascera, na Bretanha. A reinvenção se dá transformando a mediocridade e busca de reconhecimento do personagem, o que lhe trará dinheiro e prestígio, em Claude Lantier, pintor talentoso e angustiado,
por não ter o reconhecimento que merece como artista. Ambos os personagens vivem em Paris, participam de movimentos artísticos e expõem em Salões de Artes Plásticas (ver aqui no Ambiente de Leitura Carlos Romero, o texto “Os dez não eram mais que sete”, sobre o romance L’Oeuvre, de Zola). Claude, no entanto, é um estudioso da arte; Grassou, um copiador, um plagiador. Se Claude vai em busca de apreender a nuance da luz, pintando todos os dias, durante anos, o mesmo cenário em Paris, de modo a poder representar a sutileza da variação da luminosidade, Grassou é um pintor que se circunscreve ao seu atelier, que nem as cores variadas presentes nas folhas das árvores, na transição do verão para o outono, durante os últimos dias belos do ano (“des derniers beaux jours de l’année.”, p. 42) conseguem chamar a atenção, quando da sua visita ao futuro sogro, em Ville-d’Avray, perto de Paris. A única coisa que ele consegue ver, em meio ao grande parque, onde ficava a vila, é que aquela propriedade poderia ser sua, um dia, ao se casar com Virginie, filha do futuro sogro... Quanta diferença para Claude Lantier que, visitando um amigo no campo, em Bennecourt, ali se instala para poder conhecer melhor a natureza e, assim, fascinado pela luz e pelas cores, ter condições de expressar a sua arte.

A diferença fundamental entre os dois personagens se encontra na necessidade de reconhecimento pela arte, o caso de Claude, para quem a arte é uma finalidade, e na necessidade de reconhecimento pela sociedade, o caso de Grassou de Fougères, sendo a arte para ele apenas um instrumento.
"Claude Lantier", em ilustração do Tomo 1 de "L'Oeuvre" (E. Flamarion, Paris)
Claude Lantier é um dos integrantes do Bando, grupo de artistas, que criam a Escola do Ar Livre, uma luz nascente contra o tradicionalismo conservador nas artes, mas incompreendida pelo público e pelo júri dos grandes salões. Paris para Claude se traduz em várias telas, para onde quer que se olhe e busque entender a variação de suas cores e luminosidade. Descobrindo, em seus passeios, a grande tela jamais aceita pelos salões, a partir da visão da ponte des Saint-Pères, atual Pont du Carrousel, Claude vê a beleza da cidade que se descortina sobre o Sena, a Pont Neuf, Notre-Dame, île Saint-Louis e adjacências, como a Sainte-Chapelle e os contornos do Hôtel de Ville. O pintor, ainda assim, experimenta doloroso fracasso.

A ironia balzaquiana, por outro lado, não poupa a mediocridade de Pierre Grassou, cujos amigos, a seu pedido, apontam as fraquezas de seus quadros, dentre elas o desenho pesado e grosseiro (“ton dessin est lourd, empaté.”, p. 32). A sugestão dada a Grassou se alterna entre ele deixar a pintura e procurar um emprego, cedo da manhã, em algum escritório (“Va le matin, à dix heures, à quelque bureau où tu demanderas une place, et quitte les Arts.”, p. 32) e tentar a literatura (“– Tu devrais faire autre chose que de la peinture, dit Bridau. – Quoi? dit Fougères. – Jette-toi dans la littérature. Fougères baissa la tête à la façon des brebis quand il pleut.”, p. 33). Sendo a literatura a arte que exige um olhar de cada vez, olhar individual, ela requer mais para tempo para que o embuste ou a incompetência sejam descobertos.
"Pierre Grassou", ilustrado por D. Murray Smith (1839).
Já a pintura, que absorve a captação da multiplicidade concomitante de olhares, abarcando o todo, revela mais rapidamente a farsa.

Pierre Grassou só consegue pintar algo mediano (“passable”, p. 34), após sete anos de trabalho contínuo. Um de seus quadros – La toilette d’un Chouan, condamné à mort, en 1809 – integra o Salão de 1829, por piedade dos amigos, que ocupavam papel importante no movimento das Artes. Tratava-se de um plágio de um quadro desconhecido do pintor Gérard Dow. Surge aí, mais uma vez, a ironia balzaquiana. Os Chouan eram rebeldes, que lutaram na Bretanha apoiados pelos ingleses, contra a revolução francesa e em favor da monarquia, sendo derrotados pelas forças revolucionárias, em 1793, que instauram o período de Terror, e pelo jovem Cônsul Napoleão, em 1799. O reconhecimento de Grassou de Fougères se dá com Charles X, penúltimo rei de França, depois da restauração da monarquia, com a derrota napoleônica em Waterloo (1815). A mulher do rei compra a tela, o Delfim encomenda outra e Charles X o condecora, abrindo-lhe caminho para o sucesso:

“O salão foi para Pierre Grassou toda sua fortuna, sua glória, seu futuro, sua vida. Inventar em qualquer coisa é querer morrer em fogo brando; copiar é viver” (p. 35).
"Quatre heures,au salon"François Auguste Biard, 1847
A ironia se revela dupla. A sua ascensão é pouco antes da revolução de julho de 1830, que determinou a queda de Charles X. Tendo achado o seu filão de ouro, cujo coroamento é o reconhecimento social, Grassou vai escavá-lo para chegar ao objetivo desejado: a fortuna. Já Claude Lantier, diante de tantos fracassos e submetido ao riso do público, no Salão dos Recusados, ou à incompreensão, no Grande Salão, pelo quadro que representa seu filho morto (L’enfant mort), se suicida, angustiado com uma genialidade não reconhecida. O conservadorismo artístico e da sociedade mata não só o movimento renovador, como um dos seus principais integrantes.

Existem, no conto, três citações latinas, que funcionam como uma espécie de espinha dorsal da narrativa: Timeo Danaos et dona ferentes; Otium cum dignitate e abyssus abyssum. A primeira é conhecidíssima, por se tratar de um verso da Eneida de Virgílio (Livro II, verso 49), em que o sacerdote Laocoonte adverte os Troianos com relação ao cavalo de madeira – Temo os gregos e os que trazem presentes.
"Pierre Grassou", ilustração ▪ Paris, Alexandre Houssiaux, Éditeur, 1855
O presente de grego do marchand Elias Magus, que lhe apresenta a família daquele que seria o seu futuro sogro, para que dela lhe faça uma tela, acaba se tornando o caminho para a riqueza de Grassou. É presente de grego para a arte e para Monsieur Vervelle, rico negociante de garrafas, que se deixa encantar pela habilidade de plagiador de Grassou e lhe concede a mão da filha em casamento.

É nessa circunstância que as duas outras expressões latinas ganham sentido. Grassou atinge o ócio desejado (otium cum dignitate), que lhe dará a dignidade social, não a artística, pela atração que a burguesia consegue fazer no seu caráter burguês (abyssus abyssum) — um abismo atrai outro abismo ou “o burguês atrai o burguês” (p. 40), como traduz ironicamente o escritor. De tão óbvio, Balzac não precisa recorrer a uma referência à aurea mediocritas. A febre real do ouro toma o espírito de Grassou de Fougères, afastando-o do sentido bucólico de ócio com dignidade e do equilíbrio da mítica Idade de Ouro, em que pastores poderiam desfrutar da criação de suas églogas sem ter a necessidade de se preocupar com o trabalho árduo do pastoreio ou do cuidado com o campo. Grassou não é Títiro que ensina aos bosques, bem recostado sob uma frondosa faia, a dizer o nome de sua Amarílis, nesse caso a desenxabida, mas rica, Virginie Vervelle...

O ócio lhe vem, assim como a dignidade se lhe vai.

Alguns críticos veem nesse conto cenas que se assemelham à vida de Balzac, como é de hábito existirem no conjunto da sua obra. Podemos dizer que até certo ponto é verdade. Mas o escritor preocupou-se, claro, com o trabalho artístico,
"Pierre Grassou ▪ Furne, 1844, t. XI, p. 1
na criação de seu personagem. Balzac lutou pelo reconhecimento artístico, o que conseguiu em vida. Mas não foi suficiente, ele queria mais. O sonho de ser aristocrata ficou pelo meio do caminho, atrapalhado pelas dívidas e empreitadas malsucedidas, dentre elas a de impressor/editor. Queria ser Par de França – foi condecorado Cavaleiro da Legião de Honra, em 1845 –; queria ser ministro, foi deputado, em 1849; queria a Academia Francesa – candidato em 1839, desiste em favor de Victor Hugo, e experimenta duas derrotas, dez anos depois –, foi eleito presidente da Sociedade das Pessoas de Letras, em 1839; queria, talvez, o Panthéon, encontra-se enterrado no Père Lachaise... Mas suas exéquias contam com belíssimo discurso fúnebre proferido por Victor Hugo, que o achava, simplesmente, um gênio (“O ministro do Interior, Baroche, veio ao enterro. Ele estava sentado perto de mim, na igreja, diante do catafalco e, de vez em quando, ele me dirigia a palavra. Ele me disse: ‘Era um homem distinto”. Eu lhe respondi. ‘Era um gênio.’” – “L’homme vu par ses proches”, idem, p. 1118).

Para quem admira, cultiva e respira o mundo da arte, principalmente o binômio literatura-pintura, estas duas obras me parecem de leitura obrigatória, incontornáveis, eu diria. Sobretudo para aqueles que vivem a cruel aflição de mendigar o reconhecimento, tendo ou não mérito para ser reconhecido.

Balzac, em ilustração de Charles Huard em "La comédie humaine", M. Le Garde, 1910
Diga-se, no entanto, algo em favor de Pierre Grassou: o artista medíocre, plagiador e conservador alcança o sucesso desejado, entra para a Academia, apesar da zombaria dos artistas e do despreza que seu nome desperta nos ateliês, mas, por caminhos canhestros, termina por ajudar os amigos, verdadeiros artistas, comprando os seus quadros e substituindo na sua vila, as imitações de outros pintores que ele mesmo produzira. O final do conto não poderia ser mais perfeito, na absolvição da mediocridade de Pierre Grassou:

Conhecemos mediocridades mais irritantes e mais malvadas que a de Pierre Grassou, que, aliás, é de uma benevolência anônima e de uma amabilidade perfeita (p. 44).

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