Na imensa obra de Honoré de Balzac, A Comédia Humana, título emulado de A Divina Comédia de Dante Alighieri, encontramos algumas pequenas pérolas que passam, muitas vezes, despercebidas pelos seus leitores ou são menos votadas, diante do sucesso de Le Père Goriot, La Femme de trente ans, Les illusions perdues, Eugénie Grandet, La peau de Chagrin, entre outros. É o caso do conto Pierre Grassou, publicado em 1839, integrando a série Cenas da Vida Parisiense.
É claro que o espaço não permite que façamos uma comparação mais alongada. Por outro lado, não temos a intenção de exaurir os textos nos detalhes comparativos que os tornam semelhantes ou naquilo em que eles se distanciam. O resultado disso seria um trabalho longo, de caráter acadêmico, de que resolvemos nos distanciar o máximo possível, para dar vazão a textos mais concisos, que toquem a essência das obras lidas ou que se atenham a detalhes estruturantes. Eis, portanto, a intenção desta comparação: apontar algumas semelhanças estruturais, bem com as suas diferenças, de modo a realçar a inventividade, que existe na criação,
Para Zola, Balzac “escreveu a obra mais revolucionária, uma obra em que, sobre as ruínas de uma sociedade podre, a democracia cresce e se afirma” (“Balzac lu et relu par les écrivains et les critiques”. In: La Comédie Humaine: Facino Cane, Pierre Grassou, La cousine Bette, Le cousin Pons, Une ténébreuse affaire, Les Chouans. Paris, Omnibus, 2011, vol. 3, p. 1122, em tradução nossa). Não apenas isto, Balzac “fundou nosso romance atual, na mais grandiosa, na mais fremente das produções”, passando “por todos os extremos, da fé à ciência, do romantismo ao naturalismo”, sendo “o primeiro a ter afirmado a ação decisiva do meio sobre o personagem” levando “ao romance os métodos de observação e de experimentação”. “Gênio do século”, Zola o considera “o operário prodigioso que lançou as bases deste monumento das letras modernas” (idem, p. 1123).
Tendo conhecido, pois, a obra de Balzac, Émile Zola, de modo intencional ou não, retoma o tema da arte e do artista insatisfeito, mas reinventando o personagem Pierre Grassou de Fougères – este último nome, pelo qual ele era mais conhecido, foi acrescentado, em homenagem ao local onde nascera, na Bretanha. A reinvenção se dá transformando a mediocridade e busca de reconhecimento do personagem, o que lhe trará dinheiro e prestígio, em Claude Lantier, pintor talentoso e angustiado,
A diferença fundamental entre os dois personagens se encontra na necessidade de reconhecimento pela arte, o caso de Claude, para quem a arte é uma finalidade, e na necessidade de reconhecimento pela sociedade, o caso de Grassou de Fougères, sendo a arte para ele apenas um instrumento.
"Claude Lantier", em ilustração do Tomo 1 de "L'Oeuvre" (E. Flamarion, Paris)
A ironia balzaquiana, por outro lado, não poupa a mediocridade de Pierre Grassou, cujos amigos, a seu pedido, apontam as fraquezas de seus quadros, dentre elas o desenho pesado e grosseiro (“ton dessin est lourd, empaté.”, p. 32). A sugestão dada a Grassou se alterna entre ele deixar a pintura e procurar um emprego, cedo da manhã, em algum escritório (“Va le matin, à dix heures, à quelque bureau où tu demanderas une place, et quitte les Arts.”, p. 32) e tentar a literatura (“– Tu devrais faire autre chose que de la peinture, dit Bridau. – Quoi? dit Fougères. – Jette-toi dans la littérature. Fougères baissa la tête à la façon des brebis quand il pleut.”, p. 33). Sendo a literatura a arte que exige um olhar de cada vez, olhar individual, ela requer mais para tempo para que o embuste ou a incompetência sejam descobertos.
"Pierre Grassou", ilustrado por D. Murray Smith (1839).
Pierre Grassou só consegue pintar algo mediano (“passable”, p. 34), após sete anos de trabalho contínuo. Um de seus quadros – La toilette d’un Chouan, condamné à mort, en 1809 – integra o Salão de 1829, por piedade dos amigos, que ocupavam papel importante no movimento das Artes. Tratava-se de um plágio de um quadro desconhecido do pintor Gérard Dow. Surge aí, mais uma vez, a ironia balzaquiana. Os Chouan eram rebeldes, que lutaram na Bretanha apoiados pelos ingleses, contra a revolução francesa e em favor da monarquia, sendo derrotados pelas forças revolucionárias, em 1793, que instauram o período de Terror, e pelo jovem Cônsul Napoleão, em 1799. O reconhecimento de Grassou de Fougères se dá com Charles X, penúltimo rei de França, depois da restauração da monarquia, com a derrota napoleônica em Waterloo (1815). A mulher do rei compra a tela, o Delfim encomenda outra e Charles X o condecora, abrindo-lhe caminho para o sucesso:
“O salão foi para Pierre Grassou toda sua fortuna, sua glória, seu futuro, sua vida. Inventar em qualquer coisa é querer morrer em fogo brando; copiar é viver” (p. 35).
"Quatre heures,au salon"François Auguste Biard, 1847
Existem, no conto, três citações latinas, que funcionam como uma espécie de espinha dorsal da narrativa: Timeo Danaos et dona ferentes; Otium cum dignitate e abyssus abyssum. A primeira é conhecidíssima, por se tratar de um verso da Eneida de Virgílio (Livro II, verso 49), em que o sacerdote Laocoonte adverte os Troianos com relação ao cavalo de madeira – Temo os gregos e os que trazem presentes.
"Pierre Grassou", ilustração ▪ Paris, Alexandre Houssiaux, Éditeur, 1855
É nessa circunstância que as duas outras expressões latinas ganham sentido. Grassou atinge o ócio desejado (otium cum dignitate), que lhe dará a dignidade social, não a artística, pela atração que a burguesia consegue fazer no seu caráter burguês (abyssus abyssum) — um abismo atrai outro abismo ou “o burguês atrai o burguês” (p. 40), como traduz ironicamente o escritor. De tão óbvio, Balzac não precisa recorrer a uma referência à aurea mediocritas. A febre real do ouro toma o espírito de Grassou de Fougères, afastando-o do sentido bucólico de ócio com dignidade e do equilíbrio da mítica Idade de Ouro, em que pastores poderiam desfrutar da criação de suas églogas sem ter a necessidade de se preocupar com o trabalho árduo do pastoreio ou do cuidado com o campo. Grassou não é Títiro que ensina aos bosques, bem recostado sob uma frondosa faia, a dizer o nome de sua Amarílis, nesse caso a desenxabida, mas rica, Virginie Vervelle...
O ócio lhe vem, assim como a dignidade se lhe vai.
Alguns críticos veem nesse conto cenas que se assemelham à vida de Balzac, como é de hábito existirem no conjunto da sua obra. Podemos dizer que até certo ponto é verdade. Mas o escritor preocupou-se, claro, com o trabalho artístico,
"Pierre Grassou ▪ Furne, 1844, t. XI, p. 1
Para quem admira, cultiva e respira o mundo da arte, principalmente o binômio literatura-pintura, estas duas obras me parecem de leitura obrigatória, incontornáveis, eu diria. Sobretudo para aqueles que vivem a cruel aflição de mendigar o reconhecimento, tendo ou não mérito para ser reconhecido.
Balzac, em ilustração de Charles Huard em "La comédie humaine", M. Le Garde, 1910
Conhecemos mediocridades mais irritantes e mais malvadas que a de Pierre Grassou, que, aliás, é de uma benevolência anônima e de uma amabilidade perfeita (p. 44).