Este tema prendeu minha atenção em antigo texto de Rachel de Queiroz datado de 24 de agosto de 1990. Já lá se vão mais de 32 anos. A cearense escrevia sobre a posse do paraibano Ariano Suassuna na Academia Brasileira de Letras, ocorrida no dia 9 daquele mês já longínquo, e destacava o fardão especial do novo acadêmico, mistura do modelo de praxe adotado por seus pares com particularidades trazidas por Ariano, sempre preocupado em ressaltar sua nordestinidade.
Curioso que Ariano nasceu na capital paraibana, à beira do mar, em pleno Palácio da Redenção, sede do governo estadual, então presidido por seu pai, João Suassuna, posteriormente assassinado no Rio de Janeiro, nos ardores da chamada Revolução de 1930. Mas Ariano, como sabemos, absorveu e adotou para sempre a cultura caririzeira e sertaneja de que a Taperoá de seus familiares tornou-se um símbolo sempre exaltado. Taperoá áspera e árida para os outros, mas tão doce para os que a amam. Taperoá de cabras e bodes, civilização do couro, do cordel, puro sertão, com tudo que isso implica, em todos os aspectos. Pois, pode-se dizer, com alguma licença poética, ele fez questão de levar para o seu fardão solene da ABL traços desse mundo histórico e cultural profundamente incorporado ao seu ser. E isso, para a também nordestina Rachel, fez toda a diferença.
Ariano foi professor de Estética e até escreveu um livro introdutório a essa disciplina. O célebre Movimento Armorial, já cinquentenário, criado ou inspirado por ele, busca, entre outras coisas, justamente estudar, enaltecer e cultivar, nas mais diversas manifestações artísticas, uma certa estética nordestina e brasileira, popular e erudita ao mesmo tempo, fundada nas tradições mais autênticas. E ele levou isso para a sua casa no Recife, para os livros que escreveu, para a arte plástica que produziu, para o seu jeito peculiar de falar, de pensar, de agir — e de vestir.
Sabe-se que, a partir de um certo momento da vida, ele passou a se vestir de uma maneira peculiar e suas roupas passaram a ser feitas por uma costureira simples da cidade do Recife, onde morava. Nada de vestuário comprado pronto, nada de paletó e gravata. Ele personalizou sua indumentária, pode-se imaginar, para mais se parecer com os homens do povo, os homens das feiras interioranas e assemelhados. Talvez, num certo sentido, possamos afirmar que ele “armorializou” as suas roupas cotidianas, de tal modo que elas passaram a fazer parte inseparável de sua “persona” pública e privada. Por isso, Rachel de Queiroz comparou-o, nesse aspecto, com muita propriedade, ao Mahatma Gandhi.
Gandhi, como se sabe, estudou e formou-se em Direito na Inglaterra, e vestia-se, claro, como um cavalheiro inglês. Até voltar para a Índia natal e se incorporar à luta de seu povo pela independência frente ao colonizador britânico, chegando à condição de seu líder maior. Aí viu que, por uma questão de coerência, teria que se vestir como os seus conterrâneos – e mais: como os mais simples dos seus concidadãos; para usar a expressão da escritora de O Quinze, “com aquela fralda de pária”. “Tal como Gandhi, Ariano Suassuna acredita que o trajo do homem pode e deve ser a expressão física de suas ideias”, completou Rachel.
Mahatma Gandhi, em três tempos e lugares: aos 17 anos (Índia, 1886); aos 33 anos (África do Sul, 1902); e aos 62 anos (Inglaterra, 1931)
Sim, a roupa reflete em alguma medida a pessoa que a veste. Isso se sabe. Quantas vezes, em nosso cotidiano, não formamos uma ideia sobre alguém a partir de suas roupas? Às vezes, nos enganamos, claro, mas creio que quase sempre acertamos. Uma roupa pode dizer muito sobre o temperamento, a profissão, a ideologia, a educação, a personalidade e a condição social da pessoa. Pode até dizer algo sobre sua idade, mesmo nestes tempos de tanta camuflagem etária. Por isso, Gandhi e Ariano levaram as roupas a sério; não foi só uma questão de excentricidade ou de apenas querer ser diferente dos outros.
Não. Havia todo um conceito, toda uma concepção de mundo (e da forma de estar nele) por trás do vestuário deles.Gandhi radicalizou mais que Ariano quanto à indumentária. Vestiu-se com um simples manto, provavelmente de algodão tecido manualmente por ele. Era uma forma de mostrar aos indianos que eles podiam fazer as próprias vestes, sem necessidade de importá-las e comprá-las da Inglaterra. Resistência pacífica e pedagógica. Calçava uma simples sandália e com esses trajes sumários e paupérrimos viajou a Londres para negociar com os pomposos governantes britânicos aspectos da independência indiana. Churchill, numa decisão infeliz, recusou-se a receber aquele “faquir”, como ironicamente o chamou, mas na imprensa sua figura esquálida e exoticamente vestida foi um sucesso.
O fardão acadêmico de Ariano não foi confeccionado pelo alfaiate tradicional da ABL. Se não me engano, foi feito pela mesma costureira popular que fazia suas roupas do dia a dia recifense, seguindo suas orientações e escolhas. Ficou diferente, mas sem destoar muito do protocolo oficial. Isto também foi sabedoria suassuna, pois nada lhe acrescentaria agredir gratuitamente seus confrades e os formalismos inerentes à Academia. Tudo com bom senso, na medida certa.
Um pouco ao modo de Ariano e ainda no Recife, Dom Hélder Cãmara também fez da roupa uma linguagem. Enquanto seus colegas padres e até bispos aderiam, após as liberalidades do Concílio Vaticano II, ao vestuário comum das pessoas em geral, alguns até exagerando na informalidade das vestes (jeans, camiseta etc), ele fez questão de permanecer fiel à tradicional batina sacerdotal; apenas trocou a cor preta por bege, provavelmente em homenagem ao forte sol recifense. Quem o via de longe, só pela batina já sabia tratar-se do incansável pastor, que tanto gostava de andar a pé pelas ruas da cidade, confraternizando alegremente com seu rebanho. Sua batina fora de moda, que o acompanhou até o fim, adquiriu significados simbólicos que provavelmente só ele sabia em maior profundidade, mas que qualquer observador mais atento pressentia.
Sim, a escolha da roupa - e também a própria nudez - pode ser um ato político. Ou não. Pois será político o ato de comprar, compulsivamente, grifes caríssimas por parte de dondocas frívolas e alienadas?