Naquele último dia de carnaval, em Lisboa, constatávamos novamente o clima de melancolia que se percebe em algumas cidades da Europa em...

Era somente delas o último dia de carnaval

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Naquele último dia de carnaval, em Lisboa, constatávamos novamente o clima de melancolia que se percebe em algumas cidades da Europa em que se festeja o reinado de Momo. Um pouco diferente do nosso Brasil, onde a euforia desmedida por vezes impera. Entretanto, ali observava-se, no ar conquanto nostálgico, um certo toque de poesia.

Naquela tarde elas eram as rainhas do mundo. Como se todas as atenções da rua convergissem para a janela de onde derramavam e recolhiam sua própria alegria. A vaidade com que se postavam, vestidas com fantasias alusivas ao instante, radiantes e iluminadas pelo sol já a meio caminho de se pôr, era inteiramente perdoada pela pureza do momento, da ingenuidade e da singeleza de uma cena que, na verdade, poucos percebiam.

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Bruno Araujo
Mas era apenas uma fria tarde de carnaval, que passava indiferente à maioria transeunte, num dia normal, de um fevereiro qualquer. Em Portugal não se costuma dar tanto espaço para a folia momesca, mas à cenográfica e infantil poesia de duas garotas, naquela janela, de uma movimentada rua de Lisboa, toda a atenção do mundo era merecida, carnavalesca ou não.

Os carros esperavam o sinal abrir, pessoas caminhavam apressadas na calçada, mas ninguém notava aqueles dois rostinhos tão cheios de si. Elas, sim, apesar da pose, notavam tudo. A certeza de que eram observadas ainda lhes aumentava a aura de júbilo e glória que dividiam com as personagens que encarnavam: estavam maquiadas e fantasiadas, uma de anjo e a outra de abelha. E portavam-se tão divinas quanto convictas de que eram de luz a auréola de algodão da primeira, e de ouro as antenas da segunda. Decerto seriam irmãs, com pouco mais de um par de anos a lhes separar as idades.

O que mais fascinava, no entanto, era o triunfo transmitido pelo olhar de suas carinhas brancas de pó de arroz, macias como flor, cujo brilho refletia a certeza de que, naquele momento, eram o centro de todas as atenções da praça cá embaixo. E o semáforo parecia demorar ainda mais, no vermelho, sob propósito de ser cúmplice daquela vaidade, tão grande e tão pequena, tão efêmera quanto eterna…

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As meninas Cahen d’Anvers Pierre-Auguste Renoir, 1881
Por um instante pensamos estar diante de um daqueles quadros do Louvre, retratados e adornados com o recato da nobreza. Como se ao invés de anjo e abelha, as pequenas irmãs fossem as meninas Cahen d'Anvers, de Renoir. Podem acreditar que, marcada pela verdade do momento vivo, a beleza era, se não maior, exatamente a mesma.

Incrível como aqueles segundos se alongavam na sensibilidade de nossa observação. Mais ainda quando comecei a notar que, mesmo imóveis, intactas e embevecidas na convicção de que a beleza, íntima e vestida, de suas fantasias, estava muito acima dos mortais que ali passavam, e que me incluíam na plateia de seus sonhos de carnaval.

Sonhos que para mim se acabaram no seguinte e maldito momento em que o sinal abriu, e tivemos que avançar, despedindo-nos de um momento tão especial.

E elas nem perceberam que eu lhes dava adeus com o coração nadando em poesia e encantamento.

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