A Arturo Gouveia e Pierre Menard, às suas maneiras, autores do Quixote Epigrama I De como extraí um epigrama do D. Quixote (Capít...

Epigramas ao Quixote

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A Arturo Gouveia e Pierre Menard, às suas maneiras, autores do Quixote


Epigrama I
De como extraí um epigrama do D. Quixote
(Capítulo XLV da quarta parte do Livro I)
D. Quixote começou grande caos na estalagem, envolvendo todo o mundo, gente nobre e criadagem: quadrilheiros da Irmandade e o senhor estalajadeiro, Sancha Pança e o padre, um barbeiro e outro barbeiro; D. Fernando e Cardênio, D. Luiz apaixonado, filha e mãe estalajadeiras, o Ouvidor interessado; Maritornes e as donzelas de beleza sem igual: Doroteia e Zoraida e Lucinda angelical. Ajudava a Irmandade o senhor estalajadeiro, D. Luiz foi protegido por seguros companheiros; o barbeiro quis a albarda, porém Sancho não largou; D. Quixote enfureceu-se, a espada arrancou; D. Fernando e Cardênio protegeram o Cavaleiro; se o padre então já grita, Sancho apanha do barbeiro; Sancho bate no barbeiro, D. Luiz em seu vassalo, tirou sangue de seus dentes nem cuidou de estancá-lo; D. Fernando um quadrilheiro já moía a pontapés, a senhora da estalagem só gritava com o revés; sua filha se afligia, Maritornes só chorava, Doroteia tão confusa e Lucinda em suspensão, Dona Clara desmaiada, vejam só a confusão: a estalagem toda era choro, vozes, bofetadas, pontapés e confusões, sobressaltos, cutiladas. D. Quixote interveio e falou de encantamento, na estalagem, um castelo, em andantesco entendimento, conseguiu fazer a paz, pois achou velhacaria tanta gente principal se matar por ninharia.
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G. Doré, 1863
Epigrama II
De como Sancho Pança, fiel e boquirroto escudeiro, vê e define com propriedade a morte
(D. Quixote, Livro Segundo, capítulo XX)
É a morte a descarnada, que tão bem come um cordeiro, não te fies, meu Senhor, que ela engole um carneiro; e dos reis as altas torres com o pé pisa igualmente como as humildes choças dos mais pobres e carentes. Mais poder do que melindre tem a descarnada morte, a quem nada é asqueroso, tudo come e se faz forte, e de gentes todo tipo, toda sorte de idades, ela enche seus alforjes com quaisquer celebridades. É ceifeira sem as sestas, pois que ceifa a toda hora e a seca erva corta, como a verde sem demora. Tudo aquilo que se põe adiante ela engole, nem parece que mastiga, mas deglute num só gole, pois que tem fome canina e jamais ela se farta, mesmo sem barriga ter de sua fome não se aparta. Já parece uma hidrópica e sedenta de beber qualquer vida dos que vivem, como tem seu grã prazer o vivente exaurido, que, chegando ao fim da via, vai haurindo, gota a gota, um bom jarro de água fria.
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G. Doré, 1863
Epigrama III
De como o ínclito Cavaleiro D. Quixote dá uma aula de boas-maneiras, retórica elegante, conhecimento da necessidade do latim, enriquecimento da língua, aquisição do vocabulário e de sua fixação pelo uso, único que tem o arbítrio, direito e norma sobre o falar, segundo Horácio e sua Arte Poética, ao seu fiel e não menos rudo escudeiro Sancho Pança, futuro governante de fantástica e ilusória ínsula
“⏤ Eructar, Sancho, quer dizer arrotar, mas este vocábulo, ainda que muito significativo, é hoje tido como torpe [este es uno de los más torpes vocablos que tiene la lengua castellana], e assim a gente curiosa recorreu à fonte do latim, e em vez de ‘arrotar’ diz ‘eructar’, e em vez de ‘arroto’, ‘eructação’, e ainda que alguns não entendam estes termos, importa pouco, pois o uso poderá introduzir com o tempo, até que com facilidade se entendam, e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso”.
(D. Quixote, Livro Segundo, capítulo XLIII)
Que não digas “arrotar”, Sancho, dize “eructar”, mesmo significativo, é vocábulo a evitar. Por ser torpe este vocábulo nesta língua castelhana curiosos recorreram ao latim, que não engana, e em lugar de “arrotar” e de “arroto” se dizer, preferiu-se “eructar” e “eructação” manter. Inda que algumas pessoas estes termos não entendam tudo isto importa pouco, é preciso compreendam, que o uso com o tempo poderá introduzir e assim se torna fácil o vocábulo de ouvir. Isto é, meu caro Sancho, como a língua se enriquece: pelo vulgo e pelo uso, um poder que a engradece.
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G. Doré, 1863
Epigrama IV
De como D. Quixote lança o repto para uma tropa de vaqueiros que ignoram seu desafio de nobre Cavaleiro Andante, resultando em mais uma malfadada aventura
(D. Quixote, Livro Segundo, capítulo LVIII)
Caminhando, apinhados, muitos de lança na mão, eis que surgem os vaqueiros, em tropel como um trovão. Pro Quixote os lanceiros é canalla malandrina, cujo repto ignora pra batalha muito dina. E assim aconteceu o desastre anunciado, por sair o Cavaleiro dela mui desventurado: O tropel dos touros bravos atropela o Andante, atropela Sancho e o ruço e também o Rocinante; com o Sancho bem moído, deita a todos pela terra; não resulta mui católico Rocinante, que se ferra; e o ruço, coitadinho, sai dali aporreado, e o nosso Dom Quixote que se queda espantado. Mas, por fim, se levantando e correndo a grande pressa, vocifera o nosso herói, que também muito tropeça, e a cavalgada segue, vai em busca de seu ganho, sem ligar pras ameaças, mais que as nuvens de antanho.
dom quixote gustave dore
G. Doré, 1863
Epigrama V
De como Sancho Pança, escudeiro “tolo, bronco e grosso” (cap. XLIX) torna-se discreto e filósofo, após o breve governo da Ilha Baratária, dando a D. Quixote, “norte e farol da andante cavalaria” (cap. LIX), uma definição de sono (D. Quixote, Livro Segundo, capítulo LXVIII), que se coaduna com o discurso
“Não entendo esses latins ⏤ replicou Sancho. ⏤ Só entendo que enquanto eu durmo não tenho temor nem esperança, nem trabalho nem glória; e bem haja quem inventou o sono, capa que cobre todos os humanos pensamentos, manjar que mata a fome, água que afugenta a sede, fogo que esquenta o frio, frio que arrefece o ardor e, finalmente, moeda geral com que todas as coisas se compram, balança e peso que iguala o pastor com o rei e o simples com o discreto. Só uma coisa tem o sono de ruim, segundo ouvi dizer, e é que se parece à morte, pois de um dormente a um morto há muito pouca diferença”.
(D. Quixote, Livro Segundo, capítulo XX), em que Sancho filosofa sobre a morte
Não entendo esses latins, disse Sancho ao Quixote. Só entendo que se durmo, eu não temo o meu lote; Esperança eu não tenho, nem trabalho e nem glória; e a quem criou o sono, seja dada a vitória. Sono é capa a encobrir os humanos pensamentos, é manjar que mata a fome, água haurindo os sedentos, fogo que esquenta o frio, frio que amaina o ardor, é balança e é peso, que iguala rei e pastor, e o simples com o discreto; mesmo parecendo a morte – coisa ruim que há no sono, todos têm a mesma sorte –, a famosa semelhança é moeda a dar-se crença, pois de um dormente a um morto, há bem pouca diferença.

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