Agora chegando. As sombras da tarde mergulhando para baixo do carro, mas no momento da colisão subindo para lamber o para-lama e toda borda, dando a ilusão de que se atropela a silhueta estirada da fileira de casas, silhueta não exatamente reta, na margem direita, mas logo depois se percebe os frontões projetados até um ponto em que se afastam do carro, recuados e parcialmente indistintos, antes de sumir da visão. Mas então, depois, como que voltando. Freiar. Sempre esquecendo de tomar o remédio.
Agora escutando fragmentos de som à esquerda. Meninos jogam futebol no pequeno espaço subtraído à renitente erva de pasto, com tipos esparsos de arbustos. Parecem correr todos ao mesmo tempo para a bola, num enxame. Mas agora uns deles parando para ver o carro passar. É isso, crianças, olhar não paga nada.
O caminho serpeando entre as paliçadas das margens, uma arbusteira herbácea e tísica, mais constante desse lado que dá para o campo, nessa parte baixa e ainda com a memória espraiada da última laguna deixada pelo período de chuvas, por onde se tem sempre passado, sempre, sem perder de ouvir uma única temporada de sapos coaxando nesse brejo, pelo menos nesses últimos 30 anos. Pelo menos, desde que se comprou a propriedade Os Freitas, agora já pertinho dali, ao velhinho médico morador da capital, com aquele seu infalível chapéu de palha de abas longas e caídas. Comprado exclusivamente para seu estar em casa de campo, de alpendres corridos e repletos de redes que pareciam eternamente armadas para um batalhão de amigos distantes, e que jamais haveriam de lhe ter a consideração e a gentileza de botar a cara uma vez que fosse por ali. O homenzinho das tantas vezes visto a sorrir de longe para as pessoas, embora não tivesse nunca aparecido aquele que disse tê-lo avistado uma única vez que fosse, em qualquer das regiões daquela extensa comarca comprando ou vendendo coisa alguma, vá ver que até a água de beber trazia ele da capital, até a água.
Um sujeito não podia ser tão bom e ao mesmo tempo estranho quanto aquele. Parecia ter sempre o melhor dos propósitos para com seus semelhantes, desde que não confessasse nenhum deles, nem debaixo de tortura. E assim foi que, sem avisar, deixou a casa com todos aqueles utensílios e um bom número de móveis de primeiríssima qualidade, o que fez como se os estivesse largando às pressas, ou fossem de fancaria, e que, nem de longe, tivessem sido cuidadosamente e ao longo do tempo garimpados, como certamente foram, embora um troço tão fino que, caso esse povo daqui se desse à pretensão de pelo menos encostar a mão num deles, ia ter que passar o resto da vida esperando pelas “cargas de Jonas” (1). E mais um bando de galinhas d’Angola que, no longo período em que a propriedade ficou desabitada e exposta à venda, retornara à vida selvagem, mas costumando reaparecer pelo quintal, trazido talvez por alguma antiga e terna memória do almoço grátis. E de mais uma provisão de galinhas comuns, também àquela altura esvoaçantes, de asas por cortar, eventualmente escondidas entre moitas de ninhos e ovos, e disparando alarmes com a aproximação sorrateira de tejuaçus, camaleões e cobras.
Sem falar na geladeira, Electrolux, a querosene, e naqueles 2 fogões ingleses na cozinha, um dos quais, na verdade, já encontrou ali, com seu velho porte megalômano, brotado diretamente da revolução industrial europeia, deixado que fora pelo antigo chefe político da região, com uma complicada tubulação de alumínio para exaustão, de tirar o fôlego, feito uma caldeira descoberta incólume e reluzente num antigo navio adernado na costa. Um trambolhão que ainda hoje não nos permite movermos livremente pela cozinha. Talvez o que o velho dr. Lamounier estivesse deixando ali fosse a paga e o troco para aquele batalhão de criadas brancas e velhas, Sá Vicença, Sá Joana e Sá Severina, as mais velhas. As quais já encontrou por ali na mais completa disponibilidade. Elas e toda uma tribo de descendentes que parecia especialmente empenhada em varrer intrusos de lá, numa constante, feroz defesa do pomar contra a eterna invasão de estranhos, e quem mais fosse pelo menos se escorar naquele muro feito com ondulação de pedreiro caprichoso e que era ainda do tempo em que - dizia-se - o Mestre Pedro lambia pessoalmente cada tijolo antes de pousá-lo na argamassa, e antes ainda que “Pai Noro" (2) resolvesse desbravar a Pedra do Tendó, munido – numa rima – de enxada e de enxó.
Toda aquela tribo que teria vindo junta na compra que ele, Dr. Antonio “Lamunês” (3) fez à antiga família Montenegro ou Vasconcelos, coisa assim, um dia enfronhada em brasões e paramentos pela Freguesia de Santa Maria Madalena. Vá ver que metida nas liteiras, como as Dantas (balouçando-se na intimidade dos abismos pela velha Estrada da Verônica) e amiga que fôra de bispos e cônegos, alferes e intendentes, essa gente hoje tão distante e incapaz de causar qualquer assombro, com alguma inscrição ainda visível em algumas lápides do populoso cemitério, espremida ali como na última concessão da Intendência. E lá se mantendo mais apertada que cu de sapo, embora sem a menor necessidade de disputar espaço com a gente do povo, comum, essa que se vai acabando na mesma velocidade, porém em número muito maior, conforme só faça crescer. E a disputar com os seus um buraco em covas rasas, apesar de não terem enfrentado guerra e nela capitulado, como aquele povo antigo, depois da invasão de suas terras e casas, como disse Adauto D’Chiquinha, sobrinho neto de Pitá, A Velha, sempre que aparece no armazém e na falta de assunto melhor vem falar desse tempo passado, ele ou a irmã, dona Palmira, tanto faz, por que se atrapalham da mesma forma no meio das descrições, ficando de voz embargada e olho úmido, tartamudos, tomados por um tipo de emoção que acaba nos levando a cruzar os braços e abrir a boca sem entender o que está havendo, afinal, enquanto nos olham como se gente tivesse alguma obrigação de entender aquilo, e eles ali sem conseguir falar direito, a gente vendo a hora prorromperem em soluços. Fazer o que, deus meu.
(Fragmento de “O Verniz dos Santos Policromados”, romance do autor a ser publicado)