Em crônica de 1942, José Lins do Rego descreve os aperreios de famílias nordestinas castigadas pela seca que, mendigando pelas estrada...

Cangaceiros informatizados

Em crônica de 1942, José Lins do Rego descreve os aperreios de famílias nordestinas castigadas pela seca que, mendigando pelas estradas, buscavam o sustento que lhes garantissem sobreviver.

As cenas que o autor de Menino de Engenho descreve na crônica com a sutileza peculiar de sua pena, que integra o livro O gravo de Mozart é eterno, revelam a seca que presenciou em 1915. Idênticas situações que José Américo de Almeida e Raquel de Queiroz pintaram com argúcia em seus romances, nos dão a dimensão do ambiente em que, naquele ano, enquanto a Europa se deparava com a maior de todas as atrocidades,
Cely Well
o Nordeste não atinava para as mazelas sufocantes que deixavam semivivos pelas estradas, após abandonar suas casas e seu pedaço de terra onde, certamente, cultivavam seus roçados.

Se foi grande a seca de 1915, à semelhança da catástrofe de 1877, outros períodos de desolação aconteceram, que destruíram vidas e carregaram famílias para o precipício da dor e da incerteza. Também contavam com as corjas de cangaceiros a amedrontar famílias e saquear fazendas.

Segundo o relato de José Lins, ao retornar de uma viagem pelo Sertão, quando chegou ao Rio de Janeiro, o interventor Rui Carneiro levava no coração as dores de seus patrícios e o registro do que havia presenciado em Cajazeiras, Sousa, Catolé do Rocha e outras cidades paraibanas onde, àquela época, famílias acumulavam desesperanças e tinham as marcas dos cangaceiros.

O interventor paraibano conhecia intensamente o drama do povo da região onde nasceu, pois ali conviveu com a calamidade dos sertanejos. Este povo que, naquela época, olhava o céu sem nuvens e a vegetação esturricada.

Celyn Kang
A fome nunca abandonou o nordestino, está presente a cada lar de desafortunado, desde a intromissão nas tabas indígenas e nos cativeiros espalhados mesmo depois do 13 de maio.

As nuvens no céu sinalizavam chuvas escassas. Mesmo em pequenas quantidades, muitos guardavam a farinha na barrica, o feijão e o milho estocado no paiol. Mas agora, nem isso conseguem. O drama se soma a outros, com a violência espantando o povo das terras. O clima de apreensão no campo é maior do que no tempo do cangaço.

O nordestino sabe conviver com as adversidades, o sol escaldante não lhe derrete o quengo, mesmo quando as costelas estão à mostra. Da dor faz brotar poesia na canção de lamento. A literatura e a pintura expõem as mazelas com as sutilezas que a arte permite.

Se durante os dois últimos séculos o Nordeste manteve-se no campo, produzia quando o período de inverno chegava, a tentativa da reforma agrária não prosperou. Não prosperou devido à falta de políticas públicas consistentes, mas devido ao planejamento que se voltou mais para o urbano, deixando o campo relegado a plano secundário.

No livro Paraíba e seus Problemas, José Américo de Almeida traça o doloroso panorama das crises climáticas que assolaram o Nordeste, com efeitos danosos à Paraíba, sem, contudo, deixar de apontar caminhos para amenizar a situação.

No decorrer de quase um século, desde quando foram recolhidos os dados copilados em livro, o próprio Jose Américo protagonizou ações que visaram abreviar os efeitos das secas e da fome. As obras até amenizaram a dor e o sofrimento de milhares nordestinos, no entanto faltaram a sua continuidade.

Os governos, nas três esferas, anêmicos e rebuscados de íntimos interesseres, passaram a investir e assim continuam, com o olhar para o urbano, mas esqueceram o campo. No rural está a riqueza na sua mais ampla ressonância. O pensador Celso Furtado imaginava o campo produzindo organizadamente, e na outra ponta, os centros urbanos beneficiando a matéria-prima e consumindo. Mas hoje o meio rural pouco produz e a cidade passa fome, o campo passa fome, convive com a violência de cangaceiros motorizados e armados. Os malfeitores de agora estão mais bem preparados e informatizados.

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