A sinfonia começa com um solo de fagote, lento e sombrio . Reconheço o padrão musical que desde o barroco serviu como um símbolo do l...

Canção de agonia, saudade e algum riso

 tchaikovsky musica erudita sinfonia morte
A sinfonia começa com um solo de fagote, lento e sombrio . Reconheço o padrão musical que desde o barroco serviu como um símbolo do luto. Notas musicais murmurando sobre a finitude. Penso em meu pai, que há dezoito anos deixou a vida.

Acaricio a memória com os risos seus, tão ricos. A música responde. Torna-se rápida, com violinos nervosos e fanfarras. A vida transborda, mas não demora a se desvanecer – como na minha memória que já não separa a saudade áspera das lembranças macias. Violinos e violoncelos de repente gemem, ternos, cantando a existência do meu amado. Os instrumentos de sopro ecoam, delicadamente, a honrada vida que teve.

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Pyotr Ilyich Tchaikovsky OutsideOF
A sexta sinfonia traz os enigmas de Tchaikovsky e de tantas outras vidas. Por vezes doce quietude, por vezes erupção, ferocidade, ansiedade e movimento.

Os instrumentos de cordas e eu nos juntamos em solene oração pelo amado morto. Tantos fragmentos – dor, alegria, ausência, pequenos episódios da nossa vida juntos – pulsam ao mesmo tempo, reprisando o tempo que partilhamos, até que eu desmorone com a melodia e meus olhos se encham de água.

Há luto e saudade na música, mas também verões e alegria, o começo da minha vida e tu, meu pai. Teu colo, tua bondade simples, tua doçura e serenidade. Notas familiares me acompanham. O passado é uma janela aberta, pela qual me chegam os ecos da tua presença a escapar entre os meus dedos. Minha respiração segue o ritmo dos instrumentos de sopro, enquanto o coração pulsa, ritmado com as cordas. Resta-me o incômodo silêncio das ausências. Suspiro.

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Kevin Palmer
Imagens cariciosas se misturam aos violinos e violoncelos abrindo o segundo movimento da Sinfonia. A melodia agora – uma das mais belas de Tchaikovsky – lembra uma valsinha em métrica incomum. Ela me enche a alma com a tua imagem ouvindo valsas de Strauss e me apontando uma cidade no encarte de um disco muito antigo – Viena, creio, em bico de pena, com cavalos e carruagens. Suspiro lembrando da voz grave a cantarolar levemente enquanto meus risos de criança são pizzicatos que reagem à suavidade do instante e à calma amorosa.

O terceiro movimento começa festivo e me convida a mergulhar novamente nos dias em que apenas a pureza graciosa habitava em mim. Sol, calor, barco, água morna, areias bem douradas, piquenique, riso banguela e inocência. Todos estão vivos. Clarinetes e trompas celebram comigo. Havia tanto amor que só hoje percebo o quanto a felicidade de então preenchia tudo, como a música passional e grandiosa. O final magnífico , em explosão, fez o público aplaudir antes mesmo do fim da sinfonia. Não é adequado, mas penso que Tchaikovsky teria se deliciado. Endereço os aplausos a ti, meu pai, celebrando a tua memória e desejando tê-la celebrado muito mais enquanto aqui estavas, antes que a música da tua existência tivesse silenciado.

Hutchison
A beleza triunfante desse movimento soa paradoxal em meio a uma sinfonia cuja marca é a tragédia. Só agora, quando penso em ti – transitando entre as lembranças felizes e a saudade – consigo entender Tchaikovsky. Ele também se despediu da vida com uma sublime canção na qual luz e sombras se revezam. Ajoelhado e grato diante da jornada. Uma explosão luminosa e sonora antes da escuridão e da mudez.

O final é um longo e lento adagio. Morre o fagote, os sopros (tua respiração?) se acalmam. Mas não é ainda o fim. Lentamente a música e a vontade se reerguem, cheios de desejos. Uma bolsa de sangue faz fluir mais vida pelas tuas veias. Vermelha vida, lutando ainda. Vazam gotas de vida no lençol da UTI, eu lembro.

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Hutchison
Tudo para de repente. Silêncio bruto! A pausa é de segundos, não é o fim. Lutam os médicos, luta o teu corpo, luto eu contra as lágrimas. A respiração, o pulso, o teu coração vão e voltam. Angústias, pausas, retornos, tentativas, até se imobilizar para sempre o teu peito, como o arco de um violoncelo que devagar se despede das cordas em um lamento.

Desvanece-se a canção.

Silêncio.

Tudo está consumado. Exceto este amor que me toma todas as vezes que penso em ti.


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