Todas as tardes – na chamada golden hour , aquele instante antes do pôr do sol quando tudo está imerso em dourada luz e o mundo parece ...

Auroras e poentes

crepusculo por sol hora dourada
Todas as tardes – na chamada golden hour, aquele instante antes do pôr do sol quando tudo está imerso em dourada luz e o mundo parece parar por alguns instantes para mergulhar em silêncio – costumo refletir sobre as perdas e ganhos da minha vida. Prática semelhante à que fazemos quando o ano novo se aproxima e nos dedicamos a contabilizar os acontecimentos dos últimos doze meses. A minha reflexão, entretanto, é diária, pois as interrogações estão sempre em minha mente. Quanto tempo ainda me resta? O que o amanhã me reserva? Não conto com qualquer certeza do futuro, embora faça alguns poucos planos. O momento presente é o que tenho.

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Haryad Ali
Primeiro penso em meus pais, em nossa vida juntos, no que me ensinaram, nos nossos momentos de amor, apoio, risadas. Gosto de imaginá-los sentados ao meu lado, sorrindo de leve, em amorosa calma. Evito lamentar que tenham morrido tão cedo. Prefiro pensar no quanto foi bom tê-los em minha vida, mesmo que por pouco tempo. Cada instante foi precioso, um tesouro que carrego comigo. Os momentos difíceis? Sim, houve, é claro. Muitos. Como os há em toda família. Esses trouxeram aprendizados importantes que incorporei aos meus dias, mas jamais serão eles a definir o sentimento que me toma quando penso nos meus pais. Curvo-me diante deles, assim como de todos os queridos que já não vivem na Terra e me deram, por algum tempo, o privilégio e a graça de conhecê-los.

Depois penso em meus filhos e outros amados, desejando que estejam bem. Eventualmente repasso outros momentos decisivos. Acaricio as boas lembranças e não me dou ao direito de lamentar infinitamente sobre tristezas passadas – profissionais ou afetivas – usando a partícula “se”. E se eu tivesse feito de outra forma? Se não dissesse aquilo? Se não fosse naquele dia? Nada disso. É que após acontecimentos desagradáveis ou conflitos, em geral ofereço algum tempo a mim mesma para lidar com a situação. Aprendendo, observando, analisando, refletindo, aos poucos me curo. Tão logo a lição é devidamente incorporada, liberto-me do passado. Libero-me de carregar o peso alheio, aceito o que já não posso modificar. Ficam comigo apenas os aprendizados, para que eu não repita erros.

Na hora dourada, contabilizo o que fiz durante o dia, examinando se bem aproveitei as horas que tive. É um dia a menos na minha existência. Logo o sol irá se por, estendendo o cobertor da noite sobre a cidade,
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Haryad Ali
e eu irei dormir cedo. Pego no sono instantaneamente e gosto de pensar que é porque coloquei um limite à ruminação mental. Nada nos perturba mais o sono que a mente inquieta – um macaquinho a pular sobre os móveis da casa mental.

No dia seguinte, antes mesmo do sol nascer, estarei de pé. E quando a claridade surgir no horizonte, vai me encontrar com um sorriso amplo. Costumo olhar para o céu se tingindo de cores e pensar que muito sabiamente os gregos transformaram a aurora em uma deusa de róseos dedos. Uma divindade colorida que preside o nascimento do meu novo dia. Mais horas me esperam, cheias de chances e possibilidades. E tudo o que desejo é aproveitá-las como se fosse o último dia da minha existência. Nele – prometo-me, com alguma solenidade –, porei um distanciamento seguro das paixões políticas, das bolhas de debate acalorado, dos ódios gratuitos, das fofocas, dos julgamentos severos, das mesquinharias. Sei que essas coisas estão permanentemente do lado de fora (de mim) aguardando a oportunidade para me prender entre seus dentes afiados. Elas são umas serpentezinhas envolventes. Basta nos distrair para beber de seu veneno. Não serei eu a baixar a guarda.

A luz do novo dia vai me encontrar em estado de tranquilidade, com um livro nas mãos, talvez tomando chá quentinho e ouvindo Mozart e suas notas musicais vestidas de felicidade. Mozart, chá e livros fazem tudo parecer certo no mundo.

— publicado originalmente em soniazaghetto.com

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