MANUAL DA ARQUITETURA DO VAZIO
“Os quartos por onde eu deito
são pedaços de parede”
(Roberto Almada)
Divida a casa por circunstâncias
(o que fica na mobília são lembranças)
o canto é o lugar secreto,
ouvinte paciente, discreto
já as paredes, labirinto,
não duvide, segue ouvindo
cada greta guarda um nome
uma reticência e a fome
os grandes segredos morrem
quando as memórias escorrem
mágoas no porta-retrato,
amargas como o passado
nos canos, todo o defeito,
enganos, crimes desfeitos
o som percorrendo tudo
de uma ponta a outra, absurdo
corredor, tempo suspenso,
permite arrependimento
nas cores, sutil engano,
nas portas, um novo plano
“muro não prende, contorna”
casa é refúgio da aurora
na calçada ao pé do ouvido
mas dentro se diz no grito
de telhado, laje ou vidro
se priva do mundo o olvido
cada cômodo que existe
comprova que a vida insiste
mentindo de uma ponta a outra,
a casa se faz de mouca
dentro pra fora zumbido
fora pra dentro umbigo
ter um território neutro,
gritos perdidos no feltro
cada lâmpada um aviso
na escuridão, um sorriso
na tez o suor, gota e espasmo,
tudo isso é coisa do quarto
banheira, pia abismal
selando a paz conjugal
limpeza, questão de higiene,
sujeira é o piso que geme
na cozinha trinca o prato
é a hóstia, a comunhão, o trato
na mesa café com pão
migalhas, indigestão
o cheiro é a língua do gozo
que escorre durante o almoço
cada cadeira na mesa
cada resposta, fineza
na somatória dos dias
grito, calor e arrelia
e na água fria de um tanque
revela o segredo, o instante
na porta, assinado o trato
segue ao pescoço grudado
nas gavetas guarda em dobro
roupas dobradas, desconsolo
é território do chiste
o armário com seus cabides
cada vaso com sua planta
e a vaidade reza o mantra
um grão de areia é o crime
a prova, da crise a origem
porão, se acaso o tiver,
se não, cavar com a colher
cabe à inglória preguiça
o papel protagonista
voz, essa tinta de estar
da linguagem no altar
Eis o templo do sagrado
sacrilégio sem pecado
O testemunho dos pés,
rastilho dos infiéis.
Sempre o acaso a casa habita
mancha com dor, com a desdita
Porque a casa sobrevive, tesa,
à morte dos seus convivas.
MANUAL SOBRE FERROLHOS DA PORTA DE SAÍDA
E se cortasse os pulsos contornando o silêncio? Morreria ou se transformaria em outra ilusão? Materna sombra, degredo dos santos, cama de ossos e assombros, de perdas e segredo da alma buliçosa.
E se cortasse os pulsos contornando o silêncio? Morreria ou se transformaria em outra ilusão? Materna sombra, degredo dos santos, cama de ossos e assombros, de perdas e segredo da alma buliçosa.
Poemas do livro Manual para Estilhaçar Vidraças ■ Jorge Elias Neto
"Jorge Elias revela o obscuro e o colorido do ser humano, transportando o leitor para além de si mesmo. Para que isso aconteça, o autor opera com vários recursos: aliterações, rimas cruzadas, polifonia, cortes abruptos, interrupções e, principalmente, condensações"
"Jorge Elias revela o obscuro e o colorido do ser humano, transportando o leitor para além de si mesmo. Para que isso aconteça, o autor opera com vários recursos: aliterações, rimas cruzadas, polifonia, cortes abruptos, interrupções e, principalmente, condensações"
(Editora Cousa)
Disponível em cousa.minestore.com.br