O salão de Vera fervilhava! Uma semana após o Natal. Havia uma concepção de “fechar o ano” de forma deslumbrante. O movimento da vaidade era intenso e sem tréguas. Os profissionais se revezavam para atender a clientela. Seis mulheres ocupavam simultaneamente as cadeiras diante do espelho de parede inteira, que escondia a difícil tarefa de devolver uma imagem bela e proporcional às longas esperas.
Faces do desejo, seis egos ansiosos aspiravam à transformação como se definitiva se tornasse! Aquela superfície refletora favorecia a visão umas das outras e, como a vaidade dura “o tempo do olhar do(a) outro(a)”, era gratificante. A mentira partilhada e conivente originava a verdade comprovada e espelhada, abastecia o amor próprio frágil e inseguro e reduzia as diferenças.
“Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a amenidade das cores”.
O ambiente agradável era disponibilizado com paciência. Os horários eram previamente agendados, com resultados sempre compensadores. O cheiro dos produtos, o vapor dos secadores, a fumaça das pranchinhas construíam um misto de realidade e de imagens distorcidas. A conversa animada e bem dirigida revelava o treinamento da equipe e como conquistara um número generoso de adeptos.
Santo Agostinho
“O homem e a vaidade movem o mundo”.
Michel Foucault
Os assuntos partilhados diziam respeito ao réveillon e às férias de janeiro, onde e como passar, praias escolhidas, shows do verão... Uma competição quase eufórica; a necessidade de superar o projeto de outra pessoa... Um toque de inveja por trás do gentil sorriso, bem típico do mundo feminino. A juventude de algumas causava irritação mal disfarçada ao perceberem o volume dos cabelos, o brilho e o viço dos fios aos vinte anos. Uma jovem evidenciava suas longas mechas louras, e comentava:
⏤ Ainda bem que só faço uma escova. Não preciso de tingimento, é natural!
Inconscientemente, uma senhora sentada ao lado dirigiu as mãos para a cabeleira quase inexistente e, ao tocar os ralos cabelos amarrados em tufos, prontos para receber coloração, apenas olhou para a exibida criatura, e deu um leve sorriso. Ah, como essa jovem sofreria com as perdas da vida... Aquele gesto impulsivo e reativo que fizera ao constatar o fato dizia da consciência do tempo que, de tão apressado, esquecera de lembrar a quem dele se distanciou.
“E até já tens medo
De olhar no espelho:
Lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro”.
Ferreira Gullar
Uma música ambiente servia de lembrete constante sobre a época vivida. Os risos eram fartos e contagiantes e, nesse clima, o som da campainha na porta de vidro anunciou a chegada de mais uma cliente. O comentário foi unânime: “Até que enfim chegou quem estava faltando!” Heloísa nunca perdeu um sábado no salão, a mais fiel frequentadora, a “chefe da alegria”. E Vera acrescentou:
⏤ Vocês ficarão encantadas em ver a energia que ela transmite e o bom humor que a caracteriza.
O foco da atenção apontou para a figura miúda, de escassos cabelos brancos na raiz, que apenas cumprimentou a todos com um breve aceno de mão. Sentou-se na cadeira do cabeleireiro e ele a abraçou e lhe desejou boas-vindas. Ela, ao ser indagada sobre o procedimento que desejava, balançou a cabeça afirmativamente ao escutar a opção escolhida. Uma certa surpresa espalhou-se no rosto das pessoas que a imaginavam a “cereja do bolo” para completar aquela festa. Essa era a mesma criatura tão elogiada por todos?
Distraíram-se, então, com seus próprios interesses estéticos, mas uma calmaria inquieta alterou o humor do grupo. Os profissionais empenhavam-se em retomar a atmosfera perdida. Percebia-se a comunicação discreta entre eles, e cada um se propôs a resolver o problema. A manicure apresentou uma caixa com os novos esmaltes e mostrou a Dona Heloísa.
⏤ Veja, querida! Recebemos novidades, cores atuais e uma base para fortificar as unhas.
Ela voltou-se para a atenciosa jovem, retirou um esmalte de cor discreta e o entregou sem, contudo, balbuciar uma única palavra. Tentativa falha, a cabeleireira mais próxima das duas arriscou uma sugestão tentadora:
⏤ Certamente a Senhora aceitará uma fatia da torta de chocolate do meu aniversário. Sei que aprecia muito!
Também não alcançou sucesso com a proposta. E, na troca de olhares, era visível a preocupação com tão radical mudança.
Concluído o penteado e as unhas, ela transferiu o pagamento de valor conhecido. Ao levantar-se, Vera não resistiu e perguntou:
⏤ Vai sair sem nos dizer para que festa vai tão produzida assim?
Ela voltou-se, agradeceu e informou:
⏤ Estou indo para a Missa de Sétimo dia do meu marido. Hoje será o último dia que me prepararei para Carlos, mesmo que não possa ver a aprovação nos seus olhos e não receba as doces palavras que ressaltavam sua admiração. Meu companheiro amoroso partiu! De onde estiver saberá que, a partir de agora, nada fará mais sentido.
Um silêncio pesado invadiu o ambiente do salão quando aquela verdade trágica acordou o medo que cochilava em cada uma: a perspectiva do fim!
Afinal,
“É a morte que se trata de enganar por mil astúcias”.
Lacan
Por alguns minutos, impactadas, surgiram leves tremores, frontes enrugadas, olhares perplexos, esgares nas bocas, palidez, gestos bruscos, uma lágrima solidária, como se a “foice” passasse entre elas...
Mas, em seguida, a atração narcísica assumiu o controle com seu encanto hipnótico. A negação rapidamente neutralizou o risco de dor e o espelho confirmou que a vida seguia alegremente o curso das ilusões!
“És feliz porque és assim
Todo ou nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim
Conheço-me e não sou eu”.
Fernando Pessoa