Durante minha última estada em Ouro Preto, recebi das mãos do escritor e historiador José Efigênio Pinto Coelho um presente valioso para quem, como eu, gosta de enveredar por trilhas paralelas às da história oficial. Muitas vezes, na pescaria histórica, os estudiosos lançam a rede e, no arrastão, descobrem muito mais do que o que era procurado. Foi o que aconteceu com meu amigo Zé Efigênio, grande pesquisador, historiador, restaurador, artista plástico e expert na obra de Aleijadinho.
O precioso presente oferecido não apenas a mim mas também a todos os leitores da revista Memória Cult (Ouro Preto-MG - Ano IX nº 26 – nov/2019) é resultante de muitos anos de estudos e de pesquisas. Trata-se de um artigo instigante sobre a nova, e muito provavelmente, mais próxima imagem do mártir da Inconfidência Mineira.
Baseando-se em fatos plausíveis, citados no artigo, o pesquisador percorre três trilhas deveras interessantes, que jogariam por terra tudo que foi aprendido por gerações e gerações no ensino formal da História do Brasil.
Primeiramente, ele questiona a criação do mito de Tiradentes por meio da representação ideológica de Joaquim José da Silva Xavier, usada como símbolo da liberdade no início da República: túnica branca, tez morena, cabelos longos, barba e olhos negros, ou seja, o retrato de um Cristo renascentista e também uma síntese do povo brasileiro. Por meio de fontes fidedignas citadas no artigo, Tiradentes era alto, magro, louro, de olhos azuis. Essa imagem não coadunaria com as circunstâncias da época de transição entre Império e República, pelo fato de representar a imagem do colonizador. Seria bem mais eficiente criar um herói quase mestiço, pobre e simples, com o qual as pessoas se identificassem mais facilmente.
O segundo ponto questionado refere-se justamente à condição socioeconômica do herói. Por meio de levantamento de dados e de cruzamentos de informações, prova-se que, contrariamente ao que sempre foi ensinado nas escolas, Tiradentes era um dos inconfidentes mais ricos e filho de família importante. José Efigênio faz um sucinto levantamento dos bens relacionados nos autos do sequestro dos bens de Tiradentes, o que demonstra uma invejável fortuna. No século XVIII, para se ser padre, exigia-se pele branca e sangue puro. Dois de seus irmãos eram padres. Por conseguinte, a imagem do alferes pobretão moreno não procede, segundo evidências levantadas pelo estudioso. Outro ponto focalizado diz respeito à ideologia reinante na época da Inconfidência, sempre ligada ao iluminismo francês e aos ideais da Revolução Francesa. Tiradentes não se alinhava aos demais inconfidentes. Talvez sua ideologia tenha pesado no momento do veredicto da rainha Maria I, que condenou à morte apenas um dos inconfidentes. A vertente filosófica de origem inglesa desse inconfidente, o Empirismo, não vingou no Brasil, dominado pelo catolicismo. Para os empíricos, o homem tem liberdade de escolher e professar sua fé. O representante do Governo não deve ter poder divino nem lançar mão do despotismo, como o Rei-Sol (Luís XIV) e muitos outros; pelo contrário, o representante do povo deve ser tolerante.
Sabe-se que a História contida nos livros escolares comporta a visão oficial do poder constituído. Certo dia, a leitura de um livro caído em minhas mãos soou, para mim, como advertência: cuidado com o que se aprende na escola e com o que se lê. A verdade pode ser multifacetada. Trata-se do livro As várias faces da Inconfidência Mineira, de autoria de Júlio José Chiavenato (coleção “Repensando a História”, coordenada por Jaime Pinsky e Paulo Miceli). Tal coleção tem como objetivo desmitificar visões consagradas, e desenvolver uma visão crítica, análise e reformulação de temas históricos.
Chiavenato faz um retrato irônico do aspecto consuetudinário da antiga Vila Rica com suas mazelas sociais, políticas e financeiras. Ele mostra o lado torpe de Tiradentes, não para denegrir o herói, mas para mostrar que ele era simplesmente um homem “demasiadamente humano”, sujeito a todas as vicissitudes dos simples mortais. Por outro lado, afirma que Tiradentes pode ser considerado, sim, herói da Inconfidência, pelo fato de ter enfrentado tudo com dignidade e por ter-se apresentado como único culpado, para inocentar seus companheiros. Além de não se defender, clamou para si toda a culpa do levante.
Segundo esse autor, os inconfidentes podem ser considerados tanto idealistas quanto sonegadores oportunistas. Seu livro foi escrito antes das pesquisas de José Efigênio. Portanto, Chiavenato mantém parte da concepção da história oficial. A seu ver, entre todos os inconfidentes, Tiradentes era o mais vulnerável: não era rico, não tinha latifúndio, nem família importante. Era apenas um idealista inconsequente e um ótimo “bode expiatório”. Sua morte serviria de exemplo, sem causar nenhum problema aos poderosos.
Para recrudescer as controvérsias em torno do assunto, atualmente circula na internet um texto assinado por Guilhobel Aurélio Camargo, que pode despertar o interesse quanto à suposição de um (falso) enforcamento de Tiradentes. Em verdade, não se sabe o que é realmente “fake”: o enforcamento ou sua farsa, na versão divulgada.
Camargo alega que Tiradentes era maçom assíduo às reuniões e que há evidências documentais, nos Autos da Devassa, da participação da Maçonaria na Inconfidência. Segundo consta, os maçons brasileiros foram encorajados, na tentativa de libertação, pela história dos Estados Unidos da América, onde saíram vitoriosos George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson. Segundo ele, a Maçonaria, muito forte naquela época, provavelmente não admitiria que um de seus membros fosse enforcado em praça pública, o que seria uma indignidade para a entidade. Com base nisso, supõe-se que quem foi enforcado, no lugar de Tiradentes, foi um ladrão comum, condenado à forca. Vejamos o que ele diz:
Em 21 de abril de 1792, com a ajuda de companheiros da Maçonaria, foi trocado por um ladrão, o carpinteiro Isidro Gouveia. O ladrão havia sido condenado à morte em 1790 e assumiu a identidade de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida a ele pela Maçonaria. Gouveia foi conduzido ao cadafalso e testemunhas que presenciaram a sua morte se diziam surpresas porque ele aparentava ter bem menos que seus 45 anos. No livro, de 1811, de autoria de Hipólito da Costa (“Narrativa da Perseguição”) é documentada a diferença física de Tiradentes com o que foi executado em 21 de abril de 1792. O escritor Martim Francisco Ribeiro de Andrada III escreveu no livro “Contribuindo”, de 1921: “Ninguém, por ocasião do suplício, lhe viu o rosto, e até hoje se discute se ele era feio ou bonito...”
⏤ Informação extraída da internet: Link. Acesso em 13-12-15 ⏤
Tiradentes era pouco conhecido no Rio, onde foi enforcado, de modo que não seria difícil montar a farsa. Sua cabeça, que deveria ficar exposta na praça central de Vila Rica desapareceu misteriosamente na primeira noite, o que teria impossibilitado o reconhecimento por parte de amigos e familiares. Há quem acredite tê-lo visto na Europa, após a Inconfidência.
As especulações são, de certa forma, benéficas. Não se faz história com suposições, mas, de qualquer forma, elas incitam a busca de novas descobertas que, após serem devidamente comprovadas, podem mudar os registros históricos.
ESQ ⇀ Tiradentes, em gravura de José Wasth Rodrigues (1940) / DIR ⇀ Sentença prolatada contra os réus do levante e conjuração de Minas Gerais ▪ Autos da Devassa da Conjuração Mineira ▪ Fonte: Arquivo Nacional / Wikimedia
O objetivo tanto da História quanto da Literatura é narrar fatos e acontecimentos. Isso envolve personagens, tramas e enredo. O que diferencia uma da outra? O texto não-literário ou utilitário tem como marca a linguagem referencial, a denotação. Já o texto literário comporta uma linguagem pessoal, uma visão de mundo individual envolta em emoção, em lirismo e em experiências colaterais. A História pode se apresentar como fonte privilegiada para a Literatura e vice-versa. O limite entre o real e o verossímil, às vezes, torna-se tênue, quase imperceptível.Parabenizo o estudioso José Efigênio Pinto Coelho pela seriedade de suas pesquisas e pelas novas descobertas, que poderão ser de grande valia para o arcabouço historiográfico da Inconfidência Mineira.