Mito é narrativa e toda narrativa é dinâmica, sobretudo quando se apoia na oralidade. O mito segue aquele ditado popular de quem conta um conto acrescenta um ponto. Até que ele chegue a um meio escrito, as variantes tenderão a se multiplicar, guardando, evidentemente, a essência, o cerne.
Mesmo quando o mito migra para a forma escrita, ele vai encontrar ali apenas uma versão que, a depender do escritor, se tornará ou não canônica, como são os mitos homéricos, na Ilíada e na Odisseia, e os hesiódicos, na Teogonia e em Trabalhos e dias, por serem, no mundo ocidental, os mais antigos estabelecidos na forma escrita. No mundo romano, Virgílio, com a Eneida, e, sobretudo, Ovídio, com as Metamorfoses, têm esse privilégio de dar ao mito grego uma visão latina. Ovídio, eu diria, entendeu muito a natureza metamórfica do mito, tanto que a sua maior obra trata dessa transformação que se opera incessantemente em cada personagem, acrescentando ao fato uma causa, uma origem, seguindo o preceito estabelecido por Calímaco, poeta do período helenista, em seu Aitia (Αἰτία).
Mesmo quando o mito encontra uma forma escrita, tendendo à cristalização, é possível a existência de variantes. Estas podem ser fracas ou fortes, no sentido de que serão mais ou menos consideradas, de acordo com a credibilidade ou importância do poeta. É o caso dos tragediógrafos que ou recriaram mitos, como Ésquilo em Agamêmnon, ou Eurípides em As Troianas e Hécuba, ou ainda são os inauguradores, portanto, são canônicos, como Sófocles com Édipo tirano, ou Ésquilo com Prometeu acorrentado.
Ésquilo, na trilogia Oresteia, mais especificamente, na primeira das obras, Agamêmnon, dá outra versão à morte do poderoso Atrida, que nomeia sua peça. Versão diferente daquela apresentada por Homero, na Odisseia. Homero, no Canto XI da Odisseia, momento em que Odisseus vai ao Hades para falar com o adivinho Tirésias e saber como deve proceder para o seu retorno a Ítaca. Estando no limiar do Hades e já tendo falando com Tirésias, Odisseus aproveita para falar com outras almas, dentre elas a sua mãe, e ainda com Aquiles e Agamêmnon. É nesse momento que o Atrida lhe diz ter morrido nas mãos de Clitemnestra, sua esposa, e Egisto, o amante dela, quando estavam em pleno banquete, mortos como boi no matadouro.
Ésquilo, em Agamêmnon, narra de modo diferente. Em primeiro lugar, a narrativa é de outro personagem, não do próprio Agamêmnon. Depois, vemos que Agamêmnon foi morto no banho, depois de ter sido preso em uma rede jogada em cima dele. Talvez o relato tenha mudado, por causa da junção de outro mito. Um oráculo preconizava que se Agamêmnon pisasse no solo de Argos não seria morto por Clitemnestra. À sua chegada, tendo a rainha sido avisada, ela estende um tapete vermelho do navio ao palácio, evitando, assim, que o marido pise no solo pátrio, e o estimula a caminhar sobre ele, inflando o seu ego de vencedor. Urge, portanto, matá-lo no banho. É uma explicação, não a explicação.
Em Homero, o mito do tapete vermelho inexiste e Agamêmnon é morto, junto com os companheiros, no banquete a ele oferecido, por sua chegada, que se torna, portanto, um banquete fúnebre. A variante de Ésquilo é, contudo, muito forte, concorrendo com a de Homero.
Refiro-me à dinamicidade do mito e de suas variantes fortes e fracas, tendo em vista a famosa narrativa em que Xerxes, rei da Pérsia, derrotado na Grécia, puniu o Mar Negro com 300 chicotadas, por ele ter destruído a ponte que lhe permitiria atravessar o mar e assim seguir para invadir a Hélade. Muitos historiadores se referem ao fato, começando com Heródoto, até filósofos, como Montaigne, romancistas e poetas. Não tinha visto, até então o fato, que é um mito, no sentido original da palavra, ganhar a dimensão de mito, não como a narrativa de um fato plausível, mas como criação poética, pertencente, portanto, ao campo ficcional.
Em A legenda dos séculos (La legende des siècles), épico monumental do mundo moderno, Victor Hugo, recriando a história da humanidade, refere-se à ação de Xerxes, ao descrever o poderoso exército do rei persa, constituído de uma miríade de guerreiros, em marcha contra a Grécia, como podemos ver nos versos abaixo (VI, Après les dieux, les rois; III, Les trois cents – IV, Le roi. Tradução nossa):
Ce vent sur les travaux poussa les flots humides,
Rompit archés, piliers, tabliers, pyramides,
Et heurtant l’Hellespont contre le Pont-Euxin,
Fauve, il détruisit tout, comme on chasse un essaim;
Et la mer fut fatale. Alors le roi sublime
Cria: “Tu n’es qu’un gouffre, et je t’insulte, abîme!
Moi je suis le sommet. Lâche mer, souviens-t’en.”
Et donna trois cents coups de fouet à l’Océan.
Et chacun des ces coups de fouet toucha Neptune.
Alors ce dieu, qu’adore et que sert la Fortune,
Mouvante comme lui, créa Léonidas,
Et de ces trois cents coups il fit trois cents soldats,
Gardiens des monts, gardiens de lois, gardiens des villes,
Et Xercès les trouva debout aux Thermopyles.
O vento empurrou sobre os trabalhos as ondas úmidas,
Rompeu arcos, pilares, pranchas, pirâmides,
E percutindo o Helesponto contra o Ponto Euxino,
Feroz, destruiu tudo, como se expulsa um enxame;
E o mar foi fatal. Então, o rei sublime
Gritou: “Tu não és senão um pego e eu te insulto, abismo!
Eu, eu sou o cume. Lasso mar, lembra-te disso.”
E o Oceano vergastou trezentas vezes.
E cada uma das vergastadas atingiu Netuno.
Então, o deus, que a Fortuna serve e adora,
Ondulante como ele, criou Leônidas,
E das trezentas chicotadas, trezentos soldados fez,
Guardiães dos montes, guardiães das leis, guardiães das cidades,
E Xerxes os encontrou, levantados, nas Térmopilas.)
Veja-se que o fato apresentado por Hugo segue o núcleo do mito, aferrando-se ao seu cerne, pois, por mais que existam variantes, deve permanecer algo de sua essência, para que o mito seja reconhecido. O que há de novidade na recriação de Victor Hugo, nesse episódio de seu magnífico poema, é o fato de que ele não para em Heródoto, utilizado como epígrafe, citando-o em grego, no início desse terceiro episódio – Les trois cents, Os trezentos (Ξέρξης τόν Ἑλλὴσποντον ἐκέλευσε τριηκοσίας ἐπικέσθαι μάστιγι πλήγας – “Xerxes ordenou se impusessem trezentos golpes de chicotes ao Helesponto”, Livro VII, Polymnia. Tradução nossa). Hugo vai adiante e atribui a Netuno ou Posídon, o deus do mar, a criação de Leônidas, o famoso espartano, por causa do ultraje e do atrevimento de Xerxes, açoitando os seus domínios e ainda blasfemando contra eles.
Não se veja a introdução de Netuno como sem fundamento. Xerxes comete uma hybris (ὕβρις) e precisa ser punido, e o deus a puni-lo será o marinho, tendo em vista que o descomedimento de Xerxes só se acumula. O seu interesse é atacar Atenas, cidade amada pelo deus, ainda que Posídon/Netuno tenha perdido a disputa pela sua consagração para Palas Atena, que lhe ofertou a oliveira. É exatamente na batalha de Salamina, que a grandiosa frota de Xerxes é derrotada pelas 200 trirremes de Temístocles, em 480 a.C.
O grande escritor de Os trabalhadores do mar não para por aí, avança na criação do mito e atribui a origem dos trezentos, que detiveram por um momento os exércitos de Xerxes, nas Termópilas, a cada um dos açoites do louco rei persa ao Mar Negro. É exatamente esta explicação que nos dá a origem de uma determinada causa, a aitia grega (αἰτία), e que revela o poder de criação do escritor, não se contentando com o estabelecido e fixado. E o faz em versos admiráveis, pelo ritmo marcado do alexandrino e pelo efeito que causam, como aqueles para falar da extensão do exército de Xerxes (II,Le dénombrement):
Dire leurs noms, leurs cris, leurs chants, leurs pas, leur bruit,
Serait vouloir compter les souffles de la nuit;
[...]
Passait pendant sept jours et sept nuits dans les plaines,
Troupeau de combattants aux farouches haleines,
Vaste et terrible, noir comme le Phlégéton,
Et qu’on faisait marcher à grands coups de bâton.
Et ce nuage était de deux millions d’hommes.
A Enumeração
Dizer seus nomes, seus gritos, seus cantos, seus passos, seu barulho,
Seria querer contar os sopros da noite;
[...]
Passava durante sete dias e sete noites nos plainos,
Tropa de combatentes de respirações ofegantes,
Vasta e terrível, negra como o Flegetonte,
E que se fazia marchar a grandes golpes de vergasta.
E esta nuvem era de dois milhões de homens.
Em seu dinamismo, o mito, como uma verdade possível em um determinado momento, pode tornar-se a base de um fato futuramente incontestável. Do mesmo modo, um fato incontestável poderá, pela força da criatividade, se tornar o fundamento de um mito recriado. Que o digam os grandes poetas.