Certa vez, tudo por aqui virou um inferno. Um bendito inferno, cheio de poesia, imaginem só! Melhor ainda, um inferno sem calor. Pelo contrário, bem friozinho.
Quando andava às voltas com a Comédia de Dante Alighieri, a boadrasta Alaurinda nos lembrou de que a cova mais profunda dos quintos do inferno dantesco é tão fria que até as lágrimas congelam, antes de escorrerem sua dor pelas faces do tormento.
Um inferno assim só podia ser o de Dante, que baixou seu espírito iluminado por aqui, há um certo tempo. Fruto das boas leituras que atraíram, recentemente, a atenção da violinista embevecida com umas das maiores obras da literatura clássica.
Segundo o nosso amigo, professor Milton Marques Júnior, ora em périplo turístico-cultural na cidade de Victor Hugo, com sua musa Alcione Albertim, também expert em vernáculas, esta magnífica trilogia etrusca — Inferno, Purgatório e Paraíso — compõe o mais importante quarteto da história das Letras. Com Dom Quixote, Os Lusíadas, Os Contos de Canterbury e A Divina Comédia, estão assim consagrados Cervantes, Camões, Chaucer e Dante.
Voltando à tão efervescente visita dantesca entre nós, foi de uma intensidade tal que o apetite poético se estendeu ao artístico, musical e até operístico. Vieram à tona lembranças e personagens envolvidos com o infinito e grandioso universo cântico da Toscana medieval. As ilustrações da Comédia, criadas por Gustave Doré, Botticelli, Dali e até a nossa passada pela casa de Dante, em uma das visitas a Florença, se inseriram no banquete destas inesquecíveis recordações. Fez-nos assistir, em vídeo, à ópera Gianni Schicchi , de libreto cômico, musicado por Puccini, cujo protagonista é um dos pilantras que Alighieri entronou no seu inferno.
Daí sobrevieram conversas, analogias, elucubrações, tudo o que uma obra cosmovisionária dessa dimensão, riqueza e complexidade abrange e provoca. Os "passeios" de Dante com Virgilio nos lembraram os do espírito André Luiz com o seu guia Clarêncio, na consagrada obra psicografada por Chico Xavier. Fortaleceram-nos, em ambos, as evidências do fenômeno mediúnico de desdobramento, que permite experimentar visões surpreendentes e reveladoras das verdades transcendentais. Tanto que certos literatos estudiosos e adeptos do Espiritismo não mais duvidam que tais vivências tenham pontuado a criação das obras de Augusto dos Anjos, do notável fiorentino e de outros seres iluminados que demonstraram, ainda que pelas vias alegóricas, herméticas ou da metalinguagem, suas convicções espiritualistas.
A verdade é que a Comédia invadiu literalmente nossos colóquios e brincadeiras. Lembramos de como haveria tanta gente, hoje em dia, para ser colocada pelo autor nas valas profundas (e geladas!) de seu imaginário épico. De como ele incomodou a Igreja, condenando até Papas às regiões umbralinas e permitindo que Beatriz, uma mulher, o conduzisse ao Paraíso. É justamente na terceira nave desta "catedral gótica" da literatura clássica — o Paraíso —, que Milton Marques considera que Dante, há mais de 700 anos, já sabia de "coisas" que Allan Kardec só nos revelaria seis séculos depois.
Ai de nós se não fossem estas grandes obras que os espíritos sábios e inspirados deixaram na Terra em sua valiosa passagem. Muitas delas, seja na arte, música ou poesia, possuem sabor de paraíso, tão elevado é o nível de êxtase espiritual em que nos fazem levitar. Aliás, a hierarquia da tríade dantesca, segundo Jesus ensinava, vem dos próprios estados d'alma que cada um tem dentro de si, colhidos com o que se semeia.
Isso nos fez lembrar o paraíso da consciência tranquila, da paz interior, tão enfatizado, desfrutado e exemplificado pelo cronista Carlos Romero, em sua última encarnação. Seu mundo terreno era tão prazeroso, entre livros, música e viagens, que, no aconchego doméstico, certa vez, chegou a confessar a Alaurinda:
⏤ "Lau, eu tenho tanto medo de ir para o inferno, quando morrer..."
⏤ "Como assim, meu amor, se você só faz o bem?" - retrucou ela.
⏤ "É porque eu já vivo num paraíso"... haverá um melhor depois desse?”
Sim, cronista, decerto continuas a viver num paraíso, o da plenitude espiritual. Que deve ser bem parecido com o que o gênio da Toscana imaginou para as pessoas que semeiam a bondade. Se amigo dele tivesses sido, já estarias lá, há mais de 700 anos...