Ocorre-me a questão. Será que ainda existe alguma pedra daquele antigo piso com suásticas retirado, em princípios de 1995, do terraço dos fundos do Palácio da Redenção, a sede do Governo da Paraíba? Data de novembro de 2020 a última notícia que tive disso.
Na ocasião, eu produzia matéria para o “Jornal do Commercio”, do Recife. Fui ao Palácio, onde o então Chefe da Casa Civil do Governador, o saudoso Cláudio de Paiva Leite, me falou da remoção dos tais ladrilhos para os porões da Superintendência de Planejamento do Estado, a Suplan.
Em matéria anterior para o mesmo JC, eu anotara que as pedras haviam sido importadas da Europa, na década de 30, em plena expansão do nazifascismo. Eleito em 1994, o governador Antonio Mariz, penosamente acometido de um câncer e já próximo da morte, recomendaria a retirada do velho piso do Palácio, dois meses depois de empossado. “Incomodava-o ter que pisar naquilo a caminho, diariamente, do gabinete de trabalho”, contou-me Cláudio Leite.
A retirada insatisfez parcela expressiva dos meios culturais do Estado. Amigo de Mariz, o economista Ronald Queiroz tentou demovê-lo da ideia de substituição dos ladrilhos, posto que faziam parte da história e não representavam culto da Paraíba ao nazismo.
O governador, porém, manteve-se irredutível. Insistiu na remoção, no que foi obedecido por Cláudio Leite, de quem partiu a ordem de serviço. Para a história e os historiadores sobrariam um painel de oito ou dez pedras montado em cavalete. As restantes seriam levadas à guarda da Suplan. Ainda é assim?
Imagens ▪ A União
O desembargador João Pereira Gomes, ele também ocupante da Casa Civil na época de Tarcísio Burity, assegurava que o velho piso fora trazido, voluntariamente, à Paraíba e presenteado ao interventor do Estado Argemiro de Figueiredo pelo alemão Ernest Genz, representante da companhia de veículos Auto Union.Quando menino, o arquiteto Mário Glauco de Lascio viu a instalação daquilo no terraço dos fundos de um Palácio que por muito tempo serviu, também, como residência oficial dos governadores. A amizade do pai, o velho Ermenegildo, com o chefe do Governo permitia que ele corresse livremente pelos corredores e salões com os meninos da casa. Mário entendia que aquele piso apenas representava elemento de decoração, à semelhança das artes gregas ensinadas nas aulas de desenho.
O professor José Octávio de Arruda Melo mantinha opinião diferente: “Aquilo tinha sentido ideológico”, disse-me. Observou, a propósito, que Argemiro, governante da Paraíba de 1935 a 1940, era simpatizante do nazifascismo.
Na mesma conversa comigo, José Otávio também lembrava que, em 1933, a suástica já se havia tornado tão característica do nazismo que a empresa de petróleo inglesa Shell decidiu suprimi-la do logotipo, trocando-a pela marca ainda hoje em vigor. Mas, como tantos outros, ele também lamentou a retirada do Palácio dos ladrilhos com as suásticas. Argumento seu: “A história não pode ser mudada”.
O tema, sem dúvida, é ruidoso. Prova disso é que, naquele novembro, ocupou parte da manhã da Rádio Jornal do Commercio, com microfone aberto à opinião dos pernambucanos, momento depois de o Jornal impresso pelo mesmo Grupo chegar às bancas e aos assinantes, como então me dava conta o coeditor Roberto Tavares.
E nem era a matéria principal da “Segunda Capa”, a Editoria com espaço quase cativo do Escritório paraibano naqueles meus dias de correspondente do JC. Era, isto sim, um texto vinculado à reportagem sobre as origens de Rio Tinto, a cidade paraibana surgida dos esforços da família Lundgren. Era isso que abria a edição daquele Caderno. Aprovada a sugestão de pauta, fiz a viagem a fim de conversar com Waldemar Soares Ribeiro, o ex-secretário da Indústria e do Comércio que preparava livro sobre a história do município.
Contínuo, aos 9 anos de idade, da então poderosa Fábrica de Tecidos Rio Tinto, Waldemar viu os chalés de 80 famílias alemãs invadidos pelo grosso dos operários, em 18 de agosto de 1945. Quebravam tudo e exigiam a deportação dos estrangeiros. Numa das casas uma fotografia de Hitler tomou dois tiros e, em outras, queimaram pianos. É que fermentava no País e, naturalmente, em Rio Tinto, o ódio advindo do torpedeamento por submarinos alemães de navios da Marinha Mercante brasileira.
Juntamente com a Companhia Paulista – esta última na área metropolitana do Recife – a fábrica de Rio Tinto detinha a condição de o maior complexo têxtil fabril da América do Sul. Em 1908, navios trouxeram da Europa as primeiras máquinas para o fabrico de tecidos em solo paraibano. Pouco tempo depois, o Rio Mamanguape ganhava atracadouro para o desembarque de peças mecânicas de até 100 toneladas conduzidas desde o Porto de Cabedelo em barcos da própria fábrica. Em 1933, a indústria dos Lundgren recebia a visita de Getúlio Vargas e um contrato para produzir mescla azul e brim branco para a Marinha Brasileira.
Acervo: riotintopb
Em Rio Tinto, então com uma das maiores arrecadações tributárias regionais, isso significava o funcionamento pleno de centenas de teares instalados em 50 galpões com área total construída de 52 mil metros quadrados. Doze caldeiras queimavam, diariamente, 80 caminhões de lenha enquanto a fábrica gerava 15 mil empregos diretos.
Quando a maior parte das capitais nordestinas ainda desconhecia o cinemascope, o cinema de Rio Tinto, com 1,2 mil cadeiras, já exibia as megaproduções de Hollywood em tela vasta. O prédio enorme foi construído pela direção da fábrica que, aliás, edificou quase tudo o que hoje está de pé na cidade. Isso inclui a Igreja de tijolos aparentes, 2.613 casas residenciais, o hospital, as praças e o armazém destinado ao suprimento das despensas de operários, técnicos e dirigentes.
Felipe Pereira
Joserly Luiz
Foram os estrangeiros que introduziram na pequena cidade, além dos chalés de tetos inclinados, o boliche e o tênis, esportes estranhos, até então, aos hábitos nacionais. Em 1944, o menino Waldemar assistira à ocupação e o fechamento pelo Exército do Clube Alemão de Rio Tinto. Ali só se falava alemão e só se entrava com a permissão deles, extensiva a um único paraibano, o tabelião Durval Campos.
Morto o patriarca Theodor Herman Lundgren, nascido na Suécia, o comando dos negócios ficou, sucessivamente, com os filhos Herman Jr., Alberto, Frederico, Artur e Anita, educados na Alemanha e Inglaterra. Em 1917, o velho Herman já havia juntado dinheiro suficiente para comprar por vinte contos de réis, do fazendeiro Alberto de Albuquerque, os 601 quilômetros quadrados de terras onde Rio Tinto floresceu. É o que ouvi de um Waldemar saudoso dos velhos tempos.
Dele, também, a curiosa história de que muita gente via aquela Águia tenebrosa da expansão hitleterista, em alto relevo, no canto esquerdo inferior da fachada frontal da Igreja. É preciso dizer que a mesma figura de traços bem estilizados também é tomada como anjo por padres sucessivos e pela gente humilde do lugar. Do lado esquerdo, à mesma altura, não há contestação: aquilo é mesmo a figura de uma harpa com um “F.L.”, de Frederico Lundgren.
T. Potiguaras
Ah, sim... Também estive defronte ao Palacete dos Lundgren, num ponto afastado do perímetro urbano. Com os portões fechados, o fotógrafo que então me acompanhava o clicou à distância, da beira da estrada. Waldemar lembrava que, em meio às sandices então propagadas, a Rádio Tabajara noticiou que Hitler ali repousaria se vitorioso saísse da 2ª Guerra Mundial.