Não tenho medo da morte. No balanço geral o meu saldo é positivo. Gracias a la vida siempre. Aos sessenta e quatro anos juntei bem mais que cabelos brancos. Criei filhas, vi nascer netos e neta. Plantei coentro e cebolinha. Gozei dentro. Escrevi poemas e publiquei livros. Ganhei algumas alegrias, perdi outras. Quando amei olhei nos olhos. Até aqui nada foi meia boca. Não há meias verdades na minha história. Dei cabeçadas. Não sei se aprendi. Acho que não. Algumas coisas a gente nunca aprende. Apenas se sabe que machuca, dói, sara e fica no grau para a próxima pancada. O sangue das emoções jorra na face. É sempre tudo muito claro. Quase ninguém percebe. Nem eu.
De verdade, tenho medo é da loucura. Não da loucura suave que nos faz sorrir no momento seguinte. Não da loucura esparsa de quem toma um chá alucinógeno. Não da loucura induzida que tantas vezes vira semente ou fruto maduro. Mas aquela loucura que se espalha pelo corpo e pela mente como condenação. Sem saída. Só angústia. Aquela que tira a pessoa do eixo e desmantela todos os prumos. Aquela que não devolve nunca mais o teu espírito. Nem a tua paz. Uma viagem sem volta. Daquelas que só a morte acalma. Tenho medo. O martírio que não senti na pele, vi de perto.
Nunca consultei um psiquiatra. Nunca fiz terapia. Aparentemente sou um louco assintomático. A vida foi louca muitas vezes. Mais que eu. Mas fui levando no braço. Na charada e no choque. Escapei de poucas e boas. Resisti como quem rói todas as unhas, mas não confessa a agonia. Como se estivesse vestindo um disfarce que somente solta suas correntes na poesia. Perdi coisas na vida. Me constituo na soma das minhas subtrações. Sempre tive forças para suportar. Erguer os ombros e seguir em frente. Ninguém imagina, muitas vezes, o alto preço. Desmoronar é comum. Há os que surtam. Eu vou apenas escapando, feito gás de cozinha.
Já enfrentei depressões profundas. De doer nos ossos. De não conseguir falar. Sofri e sofro calado cada vez que caio no abismo. Na queda, vou medindo a possibilidade de emergir e seguir em frente. Porque só na queda a vida estanca. Um baque surdo e stop. Se não tinhas tempo para pensar, ei-lo. E na verdade só o tempo passa e essa é a única certeza. Quando a loucura é daquelas de roer o fígado e lamber doces memórias, o remédio é o mais amargo. É o remédio que vai arrancar a tua pele. A cura será o vento na carne nua. Soprando o tecido nervoso como uma brisa para depois marcar com ferro quente. Até vestir novamente a pele arrancada.
A tristeza é o único remédio para a loucura. A mais profunda tristeza. A tristeza nos salva do abandono que é a loucura. A alegria às vezes é só um disfarce. Somos tristes quando nos esforçamos para vencer uma dor. A dor e suas escadarias enormes que nos ensinam a subir. Degrau por degrau. Passo a passo. Queimando os pés numa laje em espiral. No caminho a seguir, reerguer-se. Desenlaçar-se do paraquedas na hora do salto e suportar o tombo. Juntar o que sobra. Cuspir fora do cotidiano as anáguas, as escovas de dentes esquecidas, as marcas da loucura extrema que viraram o trem.
A tristeza é o maior açoite da insanidade. Quem já não sente tristeza, perdeu o jogo para a loucura. Sentir é a única saída. Especialmente para quem perdeu as próprias pegadas num caminho pantanoso. Algo que a psiquiatria compreende, ou não. Aponta caminhos, ou não. Algo que se possa medicar. Ou não. A tristeza muitas é o último degrau da cura. Pois podemos embalar nos braços e sentir seus espasmos. É o limite do controle humano sobre a sua própria condição. No mais, somos apenas cobaias de um mundo adoecido, insano que nem mais consegue ser triste. Por isso, não me entrego.
TEIA
Lau Siqueira
então fui diluindo a loucura
ao compreender que a nascente
de tudo era um caos
urbano e diurno
aprendi a velejar pelas calçadas
como uma sombra entre sombras
sem inventar rastros
ousei calçar os sapatos da morte
e revelar-me ao círculo visceral
da existência
nem fui o insano
ou decrépito humano
apenas despi a coragem e vivi
sem pele a lapidação da alma
perdi o que
não era essência
e agora
pleno de mim
não sei nem sou