Pelé morreu. Dá para acreditar? Parece que não, mas é o jeito. Afinal, tratava-se de uma morte anunciada. Ele já estava condenado, recebendo apenas os cuidados paliativos: o corpo ferido irremediavelmente não mais respondia a quaisquer tratamentos. Fez-se o possível. Mas há, sabemos, um limite para tudo. Os seres e as coisas têm fim. Entretanto, repito: dá para acreditar?
Ídolos populares da altitude de Pelé parecem eternos. A gente se acostuma tanto com eles, com a presença cotidiana deles na nossa vida, através da televisão, dos jornais e demais meios de comunicação social, que nem sequer admitimos a hipótese de não tê-los mais. Fico pensando, em termos de Brasil, quem poderia se assemelhar a Pelé no apreço popular. Num primeiro momento, só um nome me vem ao pensamento: Roberto Carlos, o outro Rei, e ninguém mais. Um dia, espero que distante, haveremos também de ficar sem esse monarca do coração do povo. Mas dá para acreditar?
Quando o Brasil foi campeão mundial de futebol em 1958, eu tinha apenas três anos de idade; em 1962, no bicampeonato, tinha sete. Isso significa que o nome de Pelé entrou muito cedo na minha consciência de criança que mal compreendia aquela empolgação das pessoas em torno do futebol, da Copa do Mundo e dele, o ainda jovem Rei, espanto do mundo, gênio da raça, cujo apelido era repetido por todos, continuamente, em casa e na rua. Pelé Pelé Pelé.
Havia Garrincha e seus dribles espetaculares, é claro. E também o talento extraordinário de outros craques daquela geração. Mas o nome que ecoava mais era o de Pelé, sem dúvida. Talvez pelo som da pequena palavra, ou mais provavelmente por quem era designado por aquelas duas sílabas quase sagradas, pois qualquer que fosse o nome ou o apelido de Edson Arantes do Nascimento ele ressoaria da mesma forma. A televisão doméstica ainda não se massificara, mas o Canal 100 nos cinemas era o bastante para mostrar as peripécias futebolísticas do astro cada vez maior. E não só aqui, mas no mundo inteiro, para orgulho nosso.
1962, além do bicampeonato mundial de futebol para o Brasil, teve outros acontecimentos importantes. Morreram Marilyn Monroe e Hermann Hesse (Prêmio Nobel de Literatura). Teve início o Concílio Vaticano II, que tantas transformações produziu. Ocorreu a chamada Crise dos Mísseis de Cuba, que quase deu origem a uma guerra atômica entre EUA e URSS. Entre nós, a bossa nova e o cinema novo se firmavam como expressões culturais e ainda se sentia no ar, a despeito de tudo, a alegre atmosfera dos Anos JK, época de liberdade, de desenvolvimento nacional e de criatividade generalizada. Sobre tudo isso, o jovem Pelé pairava, como um deus.
E veio 1970, no México. Com o tricampeonato mundial, a consagração indiscutível e definitiva. Era realmente o maior do mundo e da história do “esporte das multidões”. Depois, os argentinos tentaram elevar Maradona às mesmas alturas. Mas não era possível, salvo para os fanáticos. As trajetórias foram outras, principalmente fora dos campos. O “hermano” foi grande, ninguém nega, mas igualá-lo a Pelé é delírio.
Como pessoa e não como jogador, pisou na bola algumas vezes, é verdade. Declarações e atitudes talvez equivocadas, como cidadão e como pai. Ninguém é perfeito, repitamos o clichê com humildade. Mas a hora é de homenagem do todo, deixemos os detalhes para as biografias que virão.
Seu lugar de nascimento, Três Corações, confirma Minas como o grande celeiro de valores nacionais, hoje desfalcado, como o Brasil, aliás. A seu pedido, ele será velado no estádio do Santos, seu clube do coração, onde começou a brilhar. O círculo da vida finalmente fechado. Começo e fim de mãos dadas. Daqui para a frente, a lenda, já desenhada, tomará forma e cores permanentes.
Li que, já no hospital e quando consciente, rezava regularmente ao lado dos familiares. Provável resquício da fé simples aprendida na infância modesta da boca de sua mãe, ainda viva, segundo soube, e centenária. Imagino que essas orações, que nunca se esquece, tenham confortado seus momentos derradeiros. Assim espero.
Falei lá atrás em gênio da raça. Sim, ele o foi, sem dúvida, ao lado de um Machado de Assis, de um Gilberto Freyre, de um Tom Jobim, de um Nelson Rodrigues e de um Oscar Niemeyer, por exemplo. Perdas dessa magnitude demoram um pouco para ser avaliadas, em extensão e em profundidade. O Brasil e o mundo terão tempo para situar Pelé na história, reconhecendo o que lhe é devido. O certo é que seu nome já está gravado na pedra e no bronze. Os anos haverão de passar - mas ele, provavelmente, não.