Refiro-me a Edson Nery da Fonseca, o escritor e intelectual recifense, que, depois de aposentar-se, escolheu para morar pelo resto da v...

O vizinho do Mosteiro

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Refiro-me a Edson Nery da Fonseca, o escritor e intelectual recifense, que, depois de aposentar-se, escolheu para morar pelo resto da vida uma casa em Olinda, vizinha ao Mosteiro de São Bento. Uma escolha de jeito nenhum aleatória, mas, ao contrário, muito refletida, se levarmos em conta sua condição de oblato beneditino. Essa casa, que me penitencio por não conhecê-la, ao menos em sua fachada externa, quando fui a Olinda e visitei o Mosteiro, deve ter sido escolhida a dedo pelo escritor por várias razões e foi uma grande sorte ele tê-la encontrado, em algum momento, disponível para compra ou locação. Mas o fato é que Nery conseguiu realizar o desejo de viver materialmente junto ao claustro, à igreja e ao refeitório de sua veneração e de sua frequência diária, o que lhe permitiu,
A casa onde viveu Edson Nery, na Rua de São Bento, Olinda.
na condição de oblato, o privilégio de estar dentro e fora do Mosteiro ao mesmo tempo.

Para quem não sabe, do ponto de vista religioso, “oblatos são indivíduos, leigos ou clérigos, normalmente vivendo em sociedade em geral, que, embora não sejam monges ou monjas professos, se afiliaram individualmente a uma comunidade monástica de sua escolha. Eles fazem uma promessa formal e privada, anualmente renovável ou vitalícia, de seguir a Regra da Ordem em sua vida privada, tanto quanto suas circunstâncias individuais e compromissos prévios permitirem. Tais oblatos são considerados uma parte extensa da comunidade monástica”. Como se vê, são quase monges ou monjas, e alguns até moram em conventos (são os oblatos conventuais). Edson Nery da Fonseca optou por morar literalmente vizinho ao Mosteiro; não quis, portanto, ser um oblato conventual, talvez por não querer separar-se de sua vasta biblioteca e de seus inumeráveis gatos.

A palavra oblação significa ofertar, fazer uma oferenda a Deus ou aos santos. No caso dos oblatos, pode-se dizer que oferecem a Deus a própria existência, mas apenas dentro do possível, não com a exclusividade total dos sacerdotes e monges. Eles mantêm um pé no Mosteiro e o outro no mundo, sendo, por isso, pessoas muito especiais, tanto no sentido religioso como no mundano, pois são duas coisas ao mesmo tempo, não sendo nenhuma delas plenamente. O historiador Hélio Silva e o crítico Alceu Amoroso Lima foram oblatos – e muitos outros mais, famosos ou anônimos.

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Hélio Silva (1904—1995)
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Alceu Amoroso Lima (1893—1983)

No caso de Edson Nery da Fonseca, considerado por muitos um dos patronos da biblioteconomia brasileira e o maior especialista em Gilberto Freyre, de quem foi dileto amigo, imagino que não deve ter sido difícil tornar-se oblato beneditino, pois, além de celibatário, manifestara antes a vontade de abraçar a vida monástica. Havia, portanto, indubitavelmente, uma certa predisposição ao claustro, à vida consagrada e recolhida.

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FotoR. Valadares ▪ Wikimedia
Almoçava e jantava diariamente no refeitório do Mosteiro, pagando certamente um valor simbólico ao abade. Comia em silêncio, igual aos monges, só que na mesa destinada aos hóspedes e convidados. Assistia à missa na igreja conventual em lugar reservado e não junto com os demais fiéis. Viveu essa ambiguidade até o fim dos seus dias: nem monge nem leigo, um ser híbrido. Dom Antão Salles, beneditino, chamou-o de “um católico inquieto” em artigo comemorativo dos oitenta anos do pernambucano, apesar de qualificá-lo também como “um beneditino integral”. Parece contraditório, mas talvez não seja. E, além do mais, sabemos que as contradições estão presentes em todos os lugares e no coração de todos nós. O oblato, ao se dividir entre o Céu e a Terra,
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Edson Nery e Gilberto Freyre, em evento no Recife, 1980s.
é o próprio retrato do paradoxo. Inquietude e serenidade andam juntas.

Edson Nery da Fonseca nasceu no Recife no dia 6 de dezembro de 1921. Seu centenário se deu, portanto, há pouco mais de um ano. Confesso que passei batido e nada escrevi a respeito na época própria. Imagino que os recifenses souberam homenageá-lo à altura de seu merecimento. Ele foi uma presença intelectual importante em Pernambuco e no Brasil. Não se pode estudar Gilberto Freyre sem se recorrer, em alguma medida, aos escritos e informações de Nery. Ele sabia tudo ou quase tudo sobre o mestre de Apipucos. Estudou, interpretou, compreendeu e divulgou a obra e o pensamento freyrianos com uma dedicação de discípulo fiel. Não tivesse o sociólogo escrito tanto, Nery seria para ele o que Platão foi para Sócrates. Não é pouca coisa.

Todavia, Edson Nery da Fonseca não se resumiu a Freyre, pois produziu numerosa obra sobre outros assuntos e temas. Escreveu sobre Manuel Bandeira, sobre a vida monástica, sobre personagens importantes da vida cultural pernambucana, sem falar nas produções memorialísticas e em suas inumeráveis colaborações nos jornais da capital pernambucana. Teve vida e nome próprios.

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Vi-o de perto aqui em João Pessoa, num já distante evento literário na UFPB, e já escrevi a respeito. Era uma presença marcante de homem alto, muito alvo e elegante. Parecia um lorde, plenamente fazendo jus à herança genética da avó inglesa. O reitor era o professor Neroaldo Pontes, ex-seminarista, a quem Nery perguntou, com fina perspicácia, se era um “défroqué”, ou seja, alguém que já habitara o convento e o deixara. Neroaldo, também perspicaz, achou muita graça nisso tudo.

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Sua sabedoria, a meu ver, foi ter ido morar vizinho ao Mosteiro, tornando-o uma extensão de sua casa de solteirão talvez solitário, a despeito dos numerosos gatos e das constantes visitas. Fez dos monges seus amigos e sua família. Sem falar nos livros, claro, povoou sua solidão com o canto gregoriano, a arte sacra e as missas que o convento oferecia ao seu deleite estético e espiritual. E ele foi realmente um refinado esteta e um cultor de profunda espiritualidade cristã.

Mesmo com atraso, que este modesto texto marque, se outros e melhores marcos não existirem, o centenário de Edson Nery da Fonseca em terras paraibanas.

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