Meu querido Germano, Estando em Paris, cidade que você admira tanto quanto eu, por tudo que ela representa para a Arte, Cultura, His...

Nova carta ao meu amigo Germano Romero

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Meu querido Germano,

Estando em Paris, cidade que você admira tanto quanto eu, por tudo que ela representa para a Arte, Cultura, História e Civilização, empenho-me em preparar um pequeno dossiê sobre Victor Hugo. Ao pensar nesse trabalho, veio-me à mente uma reflexão sobre a relação entre este escritor e Platão. A minha primeira ideia foi a de compartilhar com você, Germano, não só a preparação do documento, mas os meandros dessa relação hugoana com a alegoria do Anel de Giges, tendo em vista o seu gosto pela literatura, pelas artes, de modo geral, e pela viagem.

Em Os trabalhadores do mar, Victor Hugo escreve a epopeia de um único homem, o personagem Gilliatt, criando-o como contraponto a outro, Clubin. Sendo um o inverso simétrico do outro, o que tem Clubin de
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forjar uma aparência, tem Gilliatt de reservado, resguardando a sua essência, qualidade que o fazia, ao contrário de Clubin, impopular na ilha de Guernesey, onde ambos habitavam. Como Hugo, nos ensina, meu amigo, ao penetrar nos desvãos da alma humana, revelando-nos o nosso encantamento pela superfície e nosso desprezo pela profundidade!

Você deve estar lembrado dos meus textos por vocês publicados, neste inestimável Ambiente de Leitura Carlos Romero, que Clubin é o comandante do navio a vapor de mess Lethierry, a Durande, e sempre fez questão de mostrar-se como honesto e bom, zelando por essa imagem durante anos, diante de todos da ilha. Ao mesmo tempo, no entanto, em que ele constrói a imagem de homem probo, ele arquiteta com paciência a maneira pela qual ele poderá se aproveitar da capa de aparência, para mostrar a sua verdadeira natureza: Clubin rouba o dinheiro que pertencia a mess Lethierry, embriaga o timoneiro da Durande, leva a embarcação a um naufrágio premeditado e ainda se passa por salvador dos náufragos. E o faz, supostamente, em detrimento de sua própria vida, recusando-se a entrar no escaler, em que os náufragos se encontram, para que eles tenham oportunidade de salvação. Na realidade, meu amigo, ele conta com o naufrágio dessa embarcação também, que já está no seu limite de capacidade. Por outro lado, ele próprio necessita ficar sozinho, nos escolhos, para poder se safar e, com o dinheiro roubado, começar a sua vida em outro lugar, talvez na América. O que pode a ambição e a ganância humana, meu amigo...

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É nesse momento do romance que a real personalidade de Clubin se revela. Um hipócrita frio e calculista, tendo esperado pacientemente, por anos, que as oportunidades se complementassem, para que ele pudesse arrancar a máscara que o cobria. Tudo, porém, dá errado para ele, pois no momento de sair a nado dos rochedos Douvres, para o litoral, ele é capturado por um polvo e devorado, só restando dele a carcaça e o dinheiro de mess Lethierry, numa bolsa de couro. Hugo fala de uma intervenção inesperada (O inesperado intervém, Primeira Parte, Livro VI, Capítulo VII), contra o hipócrita e a sua natureza perversa, que não é outra, meu amigo, conforme acreditamos, senão a divina, a quem nada escapa. Alguém poderia objetar, Germano, que se trata de ficção, e estaria certo. Mas, certamente, seria alguém que não leu Hugo, que, no prefácio de A Legenda dos Séculos, afirma haver na sua obra a ficção, jamais a falsificação.

No que concerne a Gilliatt, um misto de ferreiro e de mecânico, com muita habilidade tanto para a vida de navegador, quanto para as coisas da vida prática, vemos que se chama Gilliatt Le Malin, sobrenome revelador, em que malin, dentre os muitos significados possíveis, tem aqueles de esperto e inteligente. Ao saber do naufrágio da Durande, pelos passageiros que se salvaram, Gilliatt aceita o repto lançado por Déruchette, sobrinha de Lethierry e por ele criada como filha, de casar-se com quem conseguisse salvar a máquina do navio a vapor, única maneira de seu tio/pai recuperar-se da falência iminente.

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Gilliatt, enfrentando dificuldades de toda a sorte, aceita a empresa e trava a épica batalha de um único homem, na solidão dos rochedos Douvres, forjando instrumentos, destacando a máquina dos escolhos, combatendo tenazmente contra a tempestade, lutando contra o polvo, o mesmo que matara Clubin, e logrando matar a besta. Descobrindo o cadáver de Clubin, no antro do polvo sob os rochedos Douvres, Gilliat consegue também resgatar o dinheiro roubado que pertence a mess Lethierry. Mesmo que a Segunda Parte do romance trate dessa saga, peço a sua atenção especial, meu amigo, para os capítulos A forja (Livro I, Capítulo X), Os recursos daquele a quem tudo falta (Livro II, Capítulo I), O combate (Livro III, Capítulo VI) e O monstro (Livro IV, Capítulo II). Eles são a síntese da magnífica epopeia de um só homem. Acredito, meu amigo, que esse combate antológico e eterno do homem contra as forças da natureza, aqui representado por Gilliat e a tempestade, daria uma maravilhosa sinfonia, se é que já não existe, que você tão bem sabe traduzir em textos encantadores.

Ao retornar a Guernesey com a máquina da Durande, Gilliatt vê o seu prêmio, o casamento com Déruchette, fugir por entre os dedos. Os desafios maiores e, para muitos, intransponíveis, foram vencidos pela sua perseverança, que mistura o Titã, o Ciclope, Prometeu e Jó. Como você pode constatar, Germano, não se trata de um herói anêmico, mas um forjado na têmpera dos escolhidos. O que parecia mais fácil ao nosso herói se torna uma tempestade de ímpeto avassalador, que ele não pode vencer: Déruchette está apaixonada pelo presbítero Ebenezer. Gilliatt, que demonstrara em atos a sua correção, decide casar ambos,
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à revelia de mess Lethierry, que o quer duplamente genro: comandante da Durande e marido de Déruchette.

O que faria um qualquer, meu amigo, ao encontrar situação semelhante? Iria partir para uma briga inglória, cobrando um prêmio que certamente lhe cabe, mas encerrado no coração de uma mulher que não o ama. Gilliatt está acima das mesquinharias. Do mesmo modo que, ainda que incompreendido, doava aos necessitados a sobra da pesca, ele prepara os papéis e as condições para que a sua Déruchette prometida e o presbítero casem, incluindo, como presente, um anel de noivado e o enxoval que a mãe lhe dera para o seu próprio casamento. Ato dos mais abnegados, o que só demonstra o seu caráter irrepreensível, Germano, e como já dissemos, diametralmente oposto ao de Clubin. A única fraqueza de Gilliatt é ir acompanhar a passagem do navio Cashmere, que leva os recém-casados à Inglaterra, e deixar-se engolir pelo mar, com o avanço da maré cheia. Matou-se? Deixou-se morrer? Hugo não fecha a questão. Pelo espírito combativo e que, incansável, não se entrega, acreditamos na esperança de um Gilliatt que retornará, de alguma forma à terra firme, em Guernesey.

Eis aí, meu querido amigo, os ingredientes de uma trama romântica, misto de epopeia e de tragédia, mas que se fundamenta, sem sombra de dúvida, na alegoria do Anel de Giges. Basicamente, a alegoria evocada por Sócrates, na República, de Platão (359b-360d), quer mostrar que a Justiça (assim mesmo, com J maiúsculo), só existe se começar dentro de nós, não fora de nós. Para isto, as nossas ações não podem divergir das nossas palavras. Dizer uma coisa e fazer outra é a melhor das expressões da hipocrisia.

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Tendo achado um anel que lhe concede a invisibilidade, quando girado no dedo, Giges resolve usá-lo em seu favor, para conseguir o que não poderia ter pelos meios lícitos e, mais do que lícitos, justos. A questão que perpassa esse momento do diálogo platônico, é a maneira como devemos agir, se tivermos a sorte de encontrar o Anel de Giges. Óbvio que para Sócrates, o anel não tem qualquer utilidade para aquele, cujas palavras e ações são uma só. O artefato só tem serventia para o hipócrita, aquele que faz as coisas às escondidas. As ações do homem serão tanto mais justas, quanto quando ele agir de uma única forma estando sozinho, sem testemunhas, ou estando à vista de todos. Isto é agir com Justiça. Assim se constrói a Justiça. E tendo-a construído, dentro de nós, podemos vê-la realizada fora de nós, nem que seja apenas com os nossos atos.

A diferença entre Clubin, que age às escondidas, mantendo uma capa de aparência proba, e de Gilliatt, que age às claras e cujo procedimento, quando está sem testemunhas é o mesmo, é, portanto,
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bem nítida, e nos remete à alegoria platônica. Gilliatt poderia ter ficado com o dinheiro achado com Clubin, não havia testemunha no antro do polvo, sob os rochedos. Ele, no entanto, entregou o que pertencia a seu dono. Ninguém presenciara o fato, mas ele sabia o que tinha feito e a sua consciência não admitia fazer senão o que era certo. Fez mais, livrou-se de todo ódio e ressentimento, com a recusa de Déruchette de casar-se com ele. Em outras palavras, ele abriu mão da riqueza material e da riqueza espiritual, porque nenhuma delas lhe pertencia. Gilliat, não foi malin, no sentido de esperto, que o termo abriga. Ele foi mais do que amadurecido, sabendo que ao abrir mão dos bens que não lhe pertencem é o que nos exige uma educação para a Justiça. E educar-se para a Justiça, meu amigo, ao contrário do que muitos pensam, traz sofrimento e renúncia pessoal, única forma de transformar-se e, assim, ajudar na transformação do mundo, a partir da nossa própria mudança interior. Grande lição para quem quer remover montanhas, mas não se digna a apanhar um seixo, que pode levar outra pessoa a cair.

Lembro, por fim, Germano, que os ensinamentos do Anel de Giges só adquirem um significado maior quando associados às duas outras alegorias, a da Caverna (514a-519c) e a de Er (614a-621e). Com a alegoria do Anel de Giges, aprendemos que fazer o certo independe de leis e que devemos fazê-lo estando sob os holofotes ou na intimidade reclusa de nosso quarto ou, ainda, resguardados por qualquer espécie de invisibilidade. A alegoria da Caverna leva-nos a entender que o conhecimento, promovido pela educação, fundamento da sociedade, é a maior das responsabilidades – a quem sabe mais, mais será cobrado,
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não é isto mesmo, amigo? –. Sair da escuridão e subir a íngreme escarpa, em busca da luz, para conhecer a verdade, pode cegar-nos momentaneamente, mas irá abrir os nossos olhos e a nossa percepção interior para o conhecimento libertador. Isto, porém, não é suficiente. Temos a responsabilidade de voltar à escuridão da caverna, com o risco da nossa própria vida, com o intuito de levar a luz aos que por lá permanecem, por ser, talvez, mais conveniente, afinal o conhecimento exige o esforço da subida íngreme e dificultosa. O cegamento pela luz nos abrirá outros olhos, o do raciocínio e da reflexão sobre o papel que representamos no mundo. Já a alegoria de Er é a revelação máxima de que precisamos mergulhar na nossa própria obscuridade, para daí podermos encontrar a luz da responsabilidade.

Todas as nossas ações são escolhas que não devem ser imputadas aos deuses ou aos nossos semelhantes, senão a nós mesmos. É a penosa subida até a luz, recusando as sombras convenientes ou a invisibilidade sedutora, que nos fará renascer através do conhecimento, descobrindo que os sistemas de governo são todos falhos, que nenhum poderá nos garantir a Justiça e a eudaimonia (εὐδαιμονία), essa felicidade interior que nos invade e que transborda, quando fazemos o Bem pelo amor ao Bem, quando praticamos a Justiça pelo amor à Justiça. E a Justiça, meu amigo, prepara “a eclosão lenta e suprema da liberdade, direito para esta vida, responsabilidade para a outra”, como diz Victor Hugo, no já citado prefácio de La Legende des Siècles.

Um grande abraço fraterno, meu querido amigo.

Milton

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