Rotina Convivia-se com a conformidade de ter o universo próximo de casa. O espaço delimitado pelo absurdo traço da co...

No curtume das horas ou nas contas do terço

poesia capixaba jorge elias neto
 
 
 
Rotina
Convivia-se com a conformidade de ter o universo próximo de casa. O espaço delimitado pelo absurdo traço da conveniência era marcado pelas solas dos sapatos. (e trazia a fotografia do mijo fora da privada) Para o gozo o número era par. Pouco importava a singularidade da morte.
Sobre o mito de Sísifo
A labuta não respeita o portal das casas. Dentro e fora – rolam-se pedras. – Avisem-me quem joga o bilboquê de pedra dos dias. E segue o homem-bastão entre romper o barbante ou deixar que lhe caia sobre a cabeça o peso da tomada de consciência. O homem é um ser interrompido. Seja no curtume das horas ou nas contas do terço, ele sempre se agasalha com a tênue esperança. “roda peão, bambeia peão...” No absurdo de agora e à espera da vida eterna, Amém!
Poema para o homem contemporâneo
Que imagem do mar te despertará da cegueira? Que suplício do individuo te resgatará do tédio? Que requinte de perversão te desviará do desterro? Diz-me que a poesia não constrói sentido. Que ela não diz nada; mal diz sobre as sobras. Existirá realmente acaso nesse azul derramado sobre teus ombros? E esse cadarço do teu pé esquerdo Que insiste em se lançar na vida? Eis a liturgia do ser cético; eis meu credo: um poema diletante que roga à tua carne a fratura que os ossos recusaram. Que tem uma ambição desmesurada: o ressurgimento do homem desse trono de lama.
No entorno
o homem é um ser para a morte
Martin Heidegger
No entorno havia pensamentos. Nada que se diga terá serventia quando grudado no casco dos cavalos de ferro. Espertas são as samambaias que sobrevivem na eflorescência das pedras. (aproveitam a verticalidade dos muros onde não pisam os homens). Ocupemo-nos da fuligem... Enquanto tivermos pulmões para soprar as pétalas exerceremos o ofício temerário de celebrar a vida. No entorno existe uma carência desesperada de gestos.
(poemas inéditos)


Bocas abertas
Sempre haverá uma boca do inferno mastigando [asas de querubim. Bocas escorrendo gordura exclamando babujadas: que bunda!... Bocas abertas, implorando hóstias. Bocas abertas, recebendo gozo. Bocas abertas, reclamando o justo, dizendo o justo que lhes convém... Bocas com hálito de tabaco, matando-se aos poucos. Bocas ordenhando favores, ordenando que se fechem outras bocas, involuntariamente abertas, definitivamente abertas, fechadas por outras. Haverá sempre alguma boca ruminando o nascente ou o poente; Bocas dirão amém! Outras irão além e se esquecerão do dito. A boca dizendo do amor; do dissabor. A boca e seu duplo propósito: seduzir os sentidos enquanto come o coração.
(do livro “Rascunhos do Absurdo “ - 2010)

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