Pequenas cidades sempre encantam. O tempo é outro. Gosto de observar e até experimentar hábitos de quem, aparentemente, não tem pressa. Também gosto de saborear as metrópoles. Por exemplo, às vezes tenho impressão de que São Paulo é um conglomerado de pequenas cidades. São Miguel Paulista é um exemplo. Parece cidade, mas é bairro. Há um toque de Tonico e Tinoco em cada executivo que caminha apressado na Avenida Paulista. Ah, mas existem também as cidades
que são pequenas, mas respiram cosmopolitismo. Sim, apenas algumas. Olinda é a melhor de todas.
Por vários motivos sempre viajei muito pelo interior do país. Especialmente aqui na Paraíba onde resido desde 1985. Um estado que, por uma daquelas convulsões eleitoreiras, tempos atrás aumentou consideravelmente o número dos seus municípios. Hoje são duzentos e vinte três municípios para uma população de pouco mais de quatro milhões. Pernambuco tem pouco mais de cento e oitenta e Roraima tem apenas dezoito cidades. Na Paraíba um município com vinte mil habitantes é considerado de porte médio. Especialmente se comparados com municípios como Coxixola, com pouco mais de dois mil habitantes. Coxixola fica no Cariri paraibano. É para lá que iremos viajar hoje.
No Cariri também fica a cidade de Caraúbas onde estive pela última vez em 2013. Solo seco. Vida difícil. Economia basicamente rural. Em contrapartida, uma gente generosa e da luta. Gente sem papas na língua. “Gente fina elegante e sincera”, ao cubo. A pequena Caraúbas, com pouco menos de quatro mil habitantes, não tinha restaurante até então. O almoço dos forasteiros era servido na casa de uma certa senhora. Fui avisado e notei logo que as pessoas não seguravam o riso ao pronunciar seu nome. Estávamos eu e um colega de trabalho. Sentamo-nos perto da mesa e o meu colega, de pé, atrapalhava a passagem. Ela gritou: – “Tira o c* do meio!” E meteu a mão na bunda do pobre. Daqueles safanões de desmoralizar o sujeito.
Comecei a rir sem parar e imediatamente entendi o risinho dos meus anfitriões. Meu amigo ria amarelo de espanto. Ficou constrangido, logicamente. Quando parei os anfitriões tentaram me gentilmente: – “Dona Fulana (não lembro o nome). Este é aqui é o Lau Siqueira. Ele é…” Ela não esperou o interlocutor concluir, empurrando-o de leve: – “Sai daqui! Eu quero lá saber dessa peste?” Aí eu já não segurava mais a gargalhada. Ri quilômetros e ainda rio cada vez que lembro. Depois comi um dos mais deliciosos e tradicionais pratos da culinária raiz paraibana: uma buchada de bode no capricho. Até hoje me dá água na boca. Uma especiaria com uma dose sensível da mais profunda autenticidade.
Tempos atrás soube do falecimento desta senhora. Uma figura incrível! Na aparente brutalidade eu percebi uma ternura profunda. Foi uma honra enorme conhecê-la. Ela sabia tanger a vida da sua forma. Mal-humorada ao extremo da graça, era adorada pelos dotes culinários. Uma lição para os nossos tempos. Vivemos calcados em delicadas hipocrisias. Dependendo do interesse, acontecimentos indefensáveis recebem defesas monumentais. Em todas as profissões existem os exímios, os que se destacam pelo profissionalismo. Também existem os que se destacam passando pano. Geralmente são aqueles que confundem governo com poder. Vivem trocando de assento para ficar mais perto de que pode ou acha que pode.
Pessoas como esta saudosa habitante de Caraúbas nos dão uma imensa lição de caráter. “Não importa que seja seu interlocutor. Seja sempre você mesma.” Era o que nos dizia do alto da sua polida e calculada indelicadeza. O que ela tinha para oferecer era uma comida deliciosa e não sorrisos falsos. Não queria mais que isso. Não se importava com as convenções que existem em toda pequena cidade. Dr. fulano pra cá, Dr. Fulano pra lá. Cada vez que vejo alguém passar pano pelos motivos mais inacreditáveis, lembro desta senhora. Um monumento da sinceridade. Tem gente que se esforça em agradar. Seja pela bajulação vocacionada, seja por interesses em manter determinadas cortinas numa vida descoberta a cada gesto.