Logo à entrada do Musée d'Orsay, somos recepcionados por um mural da autoria de Auguste Préault, em que aparecem, lado a lado, Dant...

Interpretações

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Logo à entrada do Musée d'Orsay, somos recepcionados por um mural da autoria de Auguste Préault, em que aparecem, lado a lado, Dante (1852) e Virgílio (1853), numa alusão à Divina Comédia, em que o poeta mantuano serve de guia (duce) e mestre (maestro) ao poeta florentino, na sua viagem. É possível que fosse para nos guiar na incursão à obra de Edvard Munch, ali em exposição...

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Edvard Much: "Autorretrato no inferno" (1895)
▪ 81,5 x 65,5cm
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Vincent Van Gogh: "Autorretrato no outono" (1887)
▪ 44 x 35,5cm

Da variedade de obras ali expostas, do clássico ao moderno, passando pelo Romantismo de Delacroix ao Realismo de Courbet, cuja Origem do Mundo (1866) deixo de mostrar aqui, para não ferir suscetibilidades, chega-se ao impressionismo de Cézanne, Manet, Monet, Toulouse-Lautrec, Renoir, Gauguin e Van Gogh, que ali comparece com dois autorretratos, ainda com a orelha, e uma das versões do célebre retrato de Dr. Gachet.

Dia muito frio, lá fora, o termômetro marcando -2 graus, nada mais reconfortante que apreciar, ainda mais lentamente, as obras em exposição, de modo a aquecer o corpo e o espírito, com tanta beleza do engenho humano.

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Charles Degeorge: "O jovem Aristóteles" (1875)
▪ 1,22m
Como uma estátua do jovem Aristóteles pode nos dizer do seu método de estudar, que formou a inteligência excepcional do estagirita? É só perceber que no colo do futuro autor da Poética (περὶ ποιητικῆς) há um manuscrito, enquanto a sua mão direita pendente se fecha sobre uma bola, presumidamente de chumbo ou ferro. Com o relaxamento dos músculos, ocasionado pela sonolência, a mão se abria, a bola caía no chão, fazia barulho e acordava o jovem, que continuava a estudar. Simples, não?

A arte tem os seus detalhes que ajudam na interpretação. Claro, é preciso ter um horizonte de expectativa (sempre ele!) mais aberto, para podermos buscar os sentidos possíveis que se escondem na realização do artista. A grande estátua de Virgílio, em destaque, no salão central do museu, mármore da autoria de Gabriel Thomas, datado de 1861, seria mais uma estátua do poeta, se ela não fosse uma síntese da produção do genial mantuano, protegido por Augusto César. A síntese, óbvio, está nos detalhes, que poucos observam. O poeta latino é mostrado com a coroa de louros de Apolo cingindo-lhe a cabeça, tendo nas mãos um pergaminho, representando a sua obra, e aos pés, do seu lado esquerdo, um gládio, uma flauta de pã e molhos de trigo, metonimicamente utilizados para destacar as suas três principais obras: Eneida, Bucólicas e Geórgicas, e o que cada uma representa – a guerra, o idílio campestre dos pastores e o trabalho na terra.

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Gabriel Thomas: "Virgílio" (1869) ▪ 1,83m
Continuando no caminho da interpretação, diremos que nem sempre o que o artista imagina é suficiente para a sua obra ser compreendida. Do mesmo jeito que a interpretação pessoal do artista não será a única possível, ainda que ele se obstine e brigue com os críticos.

Tomarei como exemplo um quadro de Honoré Daumier, de 1848, cuja finalidade é a exaltação da Segunda República francesa, após a queda de Luís Filipe, último rei de França. A tela se chama A República, tendo por subtítulo “A República nutre suas crianças e as instrui”. Trata-se de uma alegoria motivada pela nova onda republicana, que não duraria muito, pois aquele que fora eleito presidente, em 1848, Luís Bonaparte, daria um golpe de Estado, em 1851, e se tornaria, no ano seguinte, Napoleão III, instaurando o Segundo Império.

Como se pode ver pela foto, a República é uma Alma Mater, uma mãe nutriz, aleitando em seus seios fartos as crianças, tendo a seus pés outra criança,
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Honoré Daumier: "A República" (1848)
▪ 73 x 60cm
com um livro aberto no colo, representando a instrução. A interpretação, no entanto, pode ser menos idealista do que pensara o pintor. As crianças que se aleitam já estão bem firmes e crescidas, e, a julgar, pelas ações de Luís Bonaparte, continuarão a mamar em suas fartas e nunca exauridas tetas. Basta lermos o romance La Curée, de Zola, não por coincidência datado de 1871, para termos a compreensão exata do fato.

E quanto à Educação? Ela está ali, nos pés da República, sentada, desolada, com a mão na cabeça, em certa aflição, pelo descaso consigo. Que o diga Victor Hugo, com os seus discursos na Assembleia Nacional, em favor da educação gratuita, obrigatória e universal.

Mais adequada à intenção do artista talvez seja a estátua denominada Mille huit cent soixante et onze, 1871, obra em mármore, da autoria de Paul Cabet, produzida entre 1872 e 1877, para o Salão de 1877. Trata-se da alegoria da República, envolta por perturbações graves que vão desde o fim da guerra franco-prussiana, à comuna de Paris, à queda de Napoleão III e, enfim, à instauração daTerceira República francesa. Como não perceber o desespero da República, sentada com uma mão entre os joelhos, outra sustendo a cabeça abaixada, cujos louros estão recobertos com um capuz, e a expressão nada serena ou altiva, que deveria olhar para diante, não para o chão, desolada?

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Paul Cabet: "Mil oitocentos e setenta e um" (1872—1877) ▪ 1,25m
Interpretar é uma forma de ver. Não é a única, mas também não pode ser aleatória ou descontextualizada. O verbo depoente interpretor vem de interpres (inter e pretium), o intérprete, que tem o sentido de negociador, mediador. Aliás, o que está muito claro para Umberto Eco, em Quasi la stessa cosa, livro maravilhoso sobre a tradução, em que este fenômeno é visto como uma negociação, mas que não pode prescindir de contextos. Interpretar, traduzir é quase a mesma coisa, o problema sempre está no quase... Por necessitar de contextos e estruturas, a interpretação deve ser diferente de duas que vi recentemente. Uma no Louvre, em que uma mãe, diante da estátua de Diana Caçadora e sua corça, chamou a filha para ver a “rena”... A outra no Museu Rodin. O marido pergunta “Quem é o cara?”, olhando uma estátua gigantesca de Balzac, em gesso, modelo para a de bronze, que se encontra no jardim. A mulher olha a placa indicativa e responde: “Rodin”... Só falta algum desmiolado, ao ver um dos estudos para mãos, de Rodin, dizer que o artista aderiu ao famigerado “fazer arminha”...

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ESQ ⇀ DIR ▪ Auguste Rodin: "Balzac" (1898), 2,85m // Leocares (insp.): "Diana Caçadora" (Séc. II a.C), 2m // Auguste Rodin: "Estudo para mão" (Séc. XIX)
Frequentar museus e tentar compreender o que ali se encontra exige esforço, não é só uma visita de flâneur ou só para tirar fotos e depois não saber do que elas tratam. O esforço, contudo, exige um momento para o descanso. É o que mostra esta última foto. Sem interpretações.

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Paris ▪ Janeiro/2023 ▪ Imagens Milton Marques Jr / Alcione Albertim

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