Logo à entrada do Musée d'Orsay, somos recepcionados por um mural da autoria de Auguste Préault, em que aparecem, lado a lado, Dante (1852) e Virgílio (1853), numa alusão à Divina Comédia, em que o poeta mantuano serve de guia (duce) e mestre (maestro) ao poeta florentino, na sua viagem. É possível que fosse para nos guiar na incursão à obra de Edvard Munch, ali em exposição...
Da variedade de obras ali expostas, do clássico ao moderno, passando pelo Romantismo de Delacroix ao Realismo de Courbet, cuja Origem do Mundo (1866) deixo de mostrar aqui, para não ferir suscetibilidades, chega-se ao impressionismo de Cézanne, Manet, Monet, Toulouse-Lautrec, Renoir, Gauguin e Van Gogh, que ali comparece com dois autorretratos, ainda com a orelha, e uma das versões do célebre retrato de Dr. Gachet.
Dia muito frio, lá fora, o termômetro marcando -2 graus, nada mais reconfortante que apreciar, ainda mais lentamente, as obras em exposição, de modo a aquecer o corpo e o espírito, com tanta beleza do engenho humano.
Charles Degeorge: "O jovem Aristóteles" (1875)
▪ 1,22m
▪ 1,22m
A arte tem os seus detalhes que ajudam na interpretação. Claro, é preciso ter um horizonte de expectativa (sempre ele!) mais aberto, para podermos buscar os sentidos possíveis que se escondem na realização do artista. A grande estátua de Virgílio, em destaque, no salão central do museu, mármore da autoria de Gabriel Thomas, datado de 1861, seria mais uma estátua do poeta, se ela não fosse uma síntese da produção do genial mantuano, protegido por Augusto César. A síntese, óbvio, está nos detalhes, que poucos observam. O poeta latino é mostrado com a coroa de louros de Apolo cingindo-lhe a cabeça, tendo nas mãos um pergaminho, representando a sua obra, e aos pés, do seu lado esquerdo, um gládio, uma flauta de pã e molhos de trigo, metonimicamente utilizados para destacar as suas três principais obras: Eneida, Bucólicas e Geórgicas, e o que cada uma representa – a guerra, o idílio campestre dos pastores e o trabalho na terra.
Gabriel Thomas: "Virgílio" (1869) ▪ 1,83m
Tomarei como exemplo um quadro de Honoré Daumier, de 1848, cuja finalidade é a exaltação da Segunda República francesa, após a queda de Luís Filipe, último rei de França. A tela se chama A República, tendo por subtítulo “A República nutre suas crianças e as instrui”. Trata-se de uma alegoria motivada pela nova onda republicana, que não duraria muito, pois aquele que fora eleito presidente, em 1848, Luís Bonaparte, daria um golpe de Estado, em 1851, e se tornaria, no ano seguinte, Napoleão III, instaurando o Segundo Império.
Como se pode ver pela foto, a República é uma Alma Mater, uma mãe nutriz, aleitando em seus seios fartos as crianças, tendo a seus pés outra criança,
Honoré Daumier: "A República" (1848)
▪ 73 x 60cm
▪ 73 x 60cm
E quanto à Educação? Ela está ali, nos pés da República, sentada, desolada, com a mão na cabeça, em certa aflição, pelo descaso consigo. Que o diga Victor Hugo, com os seus discursos na Assembleia Nacional, em favor da educação gratuita, obrigatória e universal.
Mais adequada à intenção do artista talvez seja a estátua denominada Mille huit cent soixante et onze, 1871, obra em mármore, da autoria de Paul Cabet, produzida entre 1872 e 1877, para o Salão de 1877. Trata-se da alegoria da República, envolta por perturbações graves que vão desde o fim da guerra franco-prussiana, à comuna de Paris, à queda de Napoleão III e, enfim, à instauração daTerceira República francesa. Como não perceber o desespero da República, sentada com uma mão entre os joelhos, outra sustendo a cabeça abaixada, cujos louros estão recobertos com um capuz, e a expressão nada serena ou altiva, que deveria olhar para diante, não para o chão, desolada?
Paul Cabet: "Mil oitocentos e setenta e um" (1872—1877) ▪ 1,25m
ESQ ⇀ DIR ▪ Auguste Rodin: "Balzac" (1898), 2,85m // Leocares (insp.): "Diana Caçadora" (Séc. II a.C), 2m // Auguste Rodin: "Estudo para mão" (Séc. XIX)
Frequentar museus e tentar compreender o que ali se encontra exige esforço, não é só uma visita de flâneur ou só para tirar fotos e depois não saber do que elas tratam. O esforço, contudo, exige um momento para o descanso. É o que mostra esta última foto. Sem interpretações.Paris ▪ Janeiro/2023 ▪ Imagens Milton Marques Jr / Alcione Albertim