Já adolescente, pude ver, sim, toda a cidade de Alagoa Nova numa lapinha geral, felizes todos, nem tanto pelos três Reis Magos, como p...

Eu vi com meus olhos

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Já adolescente, pude ver, sim, toda a cidade de Alagoa Nova numa lapinha geral, felizes todos, nem tanto pelos três Reis Magos, como pela adoração de todas as gentes, pobres e ricas, novas e velhas, todas como uma só criança. A cidadezinha inteira um presépio de peregrinos a darem trégua ao trabalho de fardos, fusos, pinhões e desfibradeiras para festejar o nascimento de Jesus. E, por que não dizer, o deles.

Com efeito, de um extremo a outro do município o povo havia nascido de novo. Do Riachão ao Queira Deus, de Aldeia Velha ao Juá, tudo era agave, um roçado do tamanho do mapa, transformando mulheres de trempe e lavagem de roupa, homens de outras lavouras e fazeres, em operários seguros da nova agricultura e nova indústria.

Dilson Santos
Nunca, a olho vivo ou por leitura, me fora dado acompanhar tamanha transformação. Havia trabalho para quem nunca havia trabalhado, as terras trocando de roças e canaviais do tempo da escravatura pelas folhas pontiagudas da nova riqueza apontadas para o céu; a servidão do eito, das moendas, moendas trocadas pelo ranger livre das desfibradeiras.

Os velhos caminhos sulcados pelas cargas de rapadura, pelas ancoretas de aguardente, agora despejavam cargas contínuas de fibra douradas de sisal em procura das ruas. A cidadezinha perdera o zunido de moscas pelo dos Chebas e Fords descendo a serra para apanhar o fermento de riquezas menos concentradas, mais bem distribuídas.

Dilson Santos
Homens e meninos todos recrutados, faltando até mesmo os antigos botadores de água da gente mais abastada.

Na noite do Natal a rua não coube de festejos, das barracas de prendas às bancas e latadas, o vinho de caju e a gasosa tendo gasto. O grande, imenso pároco monsenhor Borges soltando o vozeirão de sua varanda contra a infestação do pecado que, a pretexto das festas religiosas, desbordava pelos bancos da feira, pelos becos escuros, sob as empanadas; as irmãs Colaço, filhas de Maria, vendo a hora as moças de família virarem estátua de sal.

No domingo, na missa das 10, a nave da igreja era toda a rua, os coroinhas levantando a céu aberto os incensos da celebração trescalados com os bafos gerais de zinebra e cachaça. “Para maior glória de Deus”- era o eco do altar que toda a rua entoava.

Dilson Santos
Foi essa a maior passagem de ano que meus olhos conservaram. Não o restrito à família, mas Natal do povo todo, ninguém pedindo porque todos estavam em condições de dar. Obra de uma quadra favorável em que se juntaram a necessidade estrangeira de fibras vegetais com a determinação da Paraíba de estimular o cultivo de um produto que dispensava grande capital e título de propriedade para ingressar nele. Fosse com a enxada, com uma desfibradeira a mais primitiva ou com a indústria. Foi cultura que usurpou espaço das lavouras de subsistência mas, em compensação, fez expandir as formas assalariadas do trabalho rural. Enricou os Rogério Martins, os Beija Maranhão e os Soares da exportação, mas botou sapato nos pés do povo todo.
(A Lula e os que o empossaram)


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