Ah! Como é maravilhoso sonhar! Os sonhos, às vezes, dão certo e acabam virando realidade, ou quase. Em 2006, em companhia do saudoso professor Antônio de Souza Sobrinho, ex-Reitor da UFPB, por motivos profissionais, fomos à cidade de Dona Inês, no Curimataú Oriental paraibano.
Ao lado dele, e de autoridades regionais de educação, comandamos reuniões, fizemos negociações e tomamos providências destinadas a viabilizar a instalação de uma Turma Especial do Curso de Pedagogia, com o objetivo de formar professores, em nível superior, para o ensino Infantil, Fundamental e Médio local e de municípios próximos, ainda muito desprovidos da atuação de Professores com Formação Superior, como determina a Lei 5.692, da Educação Nacional.
O programa de formação em apreço, que depois de 20 anos de atuação foi encerrado na Paraíba em 2019, esteve a cargo de prestigiada Universidade Regional e nesse compartimento do Estado atuou exitosamente nas cidades de Guarabira, Araçagi, Jacaraú, Bananeiras, Araruna, Lagoa de Dentro e Dona Inês, formando 1.838 professores em Licenciatura Plena em Pedagogia (in Uma Experiência Educacional Diferenciada na Formação de Professores, UNAVIDA/NPD, Ideia, João Pessoa, 2016, 305 p., pág. 39).
Como sempre me interesso pela cidade que estou conhecendo, neste dia, depois de cumprida a agenda de educação, saí pela cidade à procura de observar coisas curiosas, ou que, por algum motivo, despertassem a atenção de um geógrafo, mesmo em lugar ainda tão pequeno.
Logo encontrei algumas! E uma delas me chamou a atenção de modo especial: uma pedreira em exploração, dentro da cidade, que a despeito de todas as irregularidades físico-ambientais, paisagísticas, trabalhistas, de saúde pública e de segurança, causadas por sua localização em meio urbano, provia ocupação e renda a cerca de 300 famílias de baixa renda do lugar.
Pedreira de Dona Inês, Município de Dona Inês (Paraíba) @pbtur.pb.gov.br
- Que situação encrencada, disse de mim para mim mesmo, depois de percorrer toda a área!
Suficientemente informado, o que vi e observei à ocasião, resultou em texto que publiquei no Jornal O NORTE, Caderno Show & Variedades, editado por William Costa, João Pessoa (PB), Edição de 18 de dezembro de 2006 que, a seguir, reproduzo na íntegra, sob o título:
'Dona Inês e a noiva perdida do Graal'
[ ... Há muito, nutro interesse especial por toponímia. É uma das minhas manias. Origem, formação, significado, alteração ou manutenção do nome dos lugares exercem sobre mim aguda curiosidade e até certo fascínio. E tenho escrito sobre isto.
- Imaginem! Dedicação a estudos etimológicos e ou históricos dos lugares! Ou sobra o tempo a esse geógrafo, ou lhe assoma o delírio, dirão os leitores!
Município de Dona Inês (Paraíba), @pbtur.pb.gov.br
Minhas constantes andanças pelo interior paraibano, em razão de projetos de educação, e recentes leituras, por incontrolável sedução por livros e publicações de qualquer natureza, jogaram em minhas mãos dois deles que me levaram a juntar informações, observar fatos interessantes e a fazer comparações ou alusões.
Em torno da origem do topônimo Dona Inês, anteriormente Serra de Dona Inês, atribuído a um município e pequena cidade do norte da Paraíba, na microrregião do Curimataú Oriental, correm várias versões. Algumas até se tornaram lendas do imaginário popular, divulgadas em folhetos de cordel, contadas nos alpendres, ou cantadas nas feiras livres!
Uma delas, exatamente, que nenhum filho do lugar deixa passar ao narrar a história da cidade, conta que uma moça de nome Inês, vinda dos lados de Pernambuco, filha de senhor engenho, enamorara-se, perdidamente, de um de homem negro das senzalas de sua família. E sonhava ansiosamente casar-se com ele!
Ante a crueldade dos pais que mandaram enxotar o desventurado rapaz para bem longe de suas terras e dilacerada pelo infortúnio a inditosa moça caiu em desvario. E vestida de branco, da cabeça aos pés, como noiva graciosa, pôs-se a vagar pelos caminhos, à sua procura.
E Inês tanto andou e tanto vagou que, por diversas vezes, teria sido vista, de manhãzinha, ao lado do amado, se banhando nas águas tépidas e suaves da Cacimba do Cajueiro, e noite alta e ao clarão do luar, caminhando docemente sobre o vasto rochedo que se posta nas beiradas da cidade. Estas estórias teriam inspirado o topônimo que a cidade tem hoje.
Até onde levei minhas investigações, outra versão desta estória não encontrei. Mas, penso que possa existir. Quem as conhecer, as conte. Ganharão a cultura popular e o folclore paraibano.
No livro Maria Madalena e o Santo Graal (Rio de Janeiro, Ed. Sextante, 2004), Margaret Starbird registra que no folclore europeu aparece, com frequência, o tema da Noiva Perdida. Este nada mais seria que versão ficcionada do fascinante mistério em torno do Sangraal, símbolo da impiedosa negação à linhagem davídica, de direito, imposta à condição feminina, através de Miriam, de Magdala, a seguidora de Yoshua.
A estória da Noiva Perdida dos rochedos de Dona Inês, na Paraíba, não seria uma recorrência às lendas do Velho Mundo, trazidas até nós através do colonizador e presente na nossa literatura de cordel? Tanto na interpretação da fenomenológica versão sobre Miriam de Magdala, quanto na compreensão da simplória versão sobre Inês, o fulcro da questão remete à busca, aproximação e harmonia entre os princípios masculino e feminino, cerceados, em ambos os casos, por interferências autoritárias e exílio voluntário.
Em olhar mais intenso sobre a cidade paraibana de Dona Inês, a pouco e pouco, observei que se destrói o rochedo sobre o qual teria sido vista a Noiva Perdida de cá. A causa da destruição até parece nobre, porque a venda da pedra para a pequena construção implica diretamente na sobrevivência de inúmeras famílias dali.
O povo de Dona Inês e tão pouco autoridades locais me pediram sugestão. Mas, resolvi arriscar uma: garantam outra ocupação para as famílias e poupem a Serra do Lajedo e suas cercanias enquanto é tempo! Preservem a sua beleza natural. Não destruam os restos de vegetação que ainda existem e não deixem morrer os riachos e córregos que ao redor da cidade ainda fluem. Fruam a beleza rústica do lugar.
Sem mudar-lhe as características, transformem-no em aprazível recanto para o culto e o canto nas noites de luar. Evitem que o lajedo se transforme em apocalíptica ruína. Façam dele um parque para os enamorados e não enamorados!
Com medidas como esta, estarão preservando o meio ambiente, criando um espaço nobre na cidade de que todos gostarão e, de quebra, darão fôlego a um traço do nosso folclore e a uma lenda que teima em sobreviver.
E saibam todos que bem explorada, a lenda poderá dar mais a Dona Inês do que a pedra esmigalhada deu ou vem dando aos seus sofridos exploradores ... ou explorados? E o dará de forma mais duradoura! A pedra um dia acabará ... a lenda sobreviverá! Em razão dela, visitantes virão de longe para conhecer Dona Inês. Não encontrarão Inês, mas é preciso que encontrem a pedra! E que cultuem o mito!
Portanto, deixem a vagar a Noiva Perdida! Queiram-na livre e fresca sobre o rochedo intacto e alvo, a procurar o amado, sem atropelos, nas lindas noites de luar de Dona Inês, nos serrotes secos do Curimataú paraibano. Não queiram uma “Inês Acorrentada” em seu lajedo, para sempre, como o mitológico Prometeu de Ésquilo. Poupem-na deste castigo, pois o fogo de sua paixão não foi roubado, nem pertencia aos deuses como o fogo de Prometeu. Pertencia a ela mesma e à condição humana que ela aí expunha... ]
Confesso que não esperava a repercussão que o texto alcançou. A Internet e as redes sociais ainda não tinham o papel que agora têm. A difusão que o artigo teve, se deu pela leitura do Caderno Show & Variedades, do jornal O Norte, e pelos contactos directos que eu mantinha, à época, com pequena tribo de escritores amigos.
Algum tempo depois, fui procurado pela então Secretária de Educação de Dona Inês, a Professora Wilma Batista que muito elogiou o texto e me informou que a gestão de seu esposo Luiz José da Silva, então prefeito constitucional, logo estaria estudando medidas com relação à melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores da pedreira e buscado opções para a sua inserção paulatina em outras atividades.
Passado mais algum tempo, em razão do tal artigo publicado no Jornal O Norte, recebi ligação telefônica do homem de teatro e cinema Professor Elpidio Navarro, propondo que se eu liberasse o texto, ele gostaria de roteirizá-lo para um filme. Solicitou a minha concordância, ao que de plano assenti. Lamentavelmente, mal tínhamos iniciado conversações, fui surpreendido pelo norte prematuro falecimento do Professor Elpídio, ex diretor do Teatro Santa Roza.
De maneira incrível, neste domingo, 15 de janeiro de 2023, para minha surpresa, satisfação e regozijo com os moradores e com os cortadores de pedra de Dona Inês, recebo link, repassado a partir de São Paulo, do médico Marcos Siebra, me dando conta do que aconteceu recentemente à pedreira de Dona Inês, 17 anos depois daqueles escritos e que o leitor encontrará aqui.
As obras do artista Tarciso Play, no Lajedo da Serra, na cidade de Dona Inês, divulgadas por estes canais, estampam arte inspirada em histórias contadas por pessoas simples do lugar, vaqueiros, lavadeiras, cortadores de pedras, reunidas pelo cordelista Mariano Ferreira, idealizador do projeto de grafitagem.
O trabalho de Tarciso Play, em Dona Inês-PB, remete ao trabalho realizado pelo célebre artista de rua, o paulista Eduardo Kobra, na região de Carrara, na Itália, onde ocorrem áreas devastadas pela exploração do famoso mármore, e no qual o artista paraibano afirma se inspirar, enquadrando sua obra no conceito de “arte urbana e ativismo” defendido por Kobra.
Pelo conjunto da obra deste criativo artista local Tarciso Play, executada em Dona Inês, e cujas imagens se encontram reproduzidas em matéria da Fôlha de São Paulo / Uol.com pode-se afirmar, sem medo de errar, que pela força da criatividade mais um ponto e um destino turístico se revelam na Paraíba, e que para um particular grupo de oprimidos trabalhadores poderá estar surgindo uma luz no fim do túnel. É esperar para ver, como aconteceu com o visual do lajedo.
A arte de Tarciso Play induz marcas de embelezamento urbano, redução de poluição, melhoria de qualidade de vida e de saúde, e mudança de hábitos, nessa acolhedora pequena cidade do Curimataú Oriental. E para mim, isto é mais do que suficiente para que eu me regozije, por em dia já distante, ter-me intrometido em assunto que consegue ser, ao mesmo tempo, cruel e opressor, delicado e nobre.