Como já disse, meu primeiro poema longo - Trigal com Corvos - me custou uma década para chegar a finalista do prêmio Nestlé, e mais doi...

Dizem que a vida é curta, que o tempo voa, que não dá tempo pra nada. Eu não acho!

Como já disse, meu primeiro poema longo - Trigal com Corvos - me custou uma década para chegar a finalista do prêmio Nestlé, e mais dois anos para que eu o publicasse e ele vencesse o prêmio João Cabral de Melo Neto, da União Brasileira de Escritores, Rio. Minha versão do Jardim das Delícias, do Bosch, me consumiu seis meses. O painel Homenagem a Shakespeare, da UFPB, nove. E - caramba, como foi longa a novela O Direito de Nascer, da Rádio Nacional, que minha mãe e minhas irmãs ouviam enquanto costuravam, quando eu era menino! Como eram demoradas as indecifráveis – e por isso místicas – missas em latim, e as novenas, trezenas (o hipnótico balanço dos turíbulos a espalhar lentos incensos nos espaços gigantescos da catedral de Sorocaba, da igreja de Santa Rita, da igreja de São Judas Tadeu) !

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Como eram remanchosas as procissões em que eu tinha de acompanhar minha mãe, com a banda de música, densa, reforçando o ressentido e respeitoso coro do povo! Há décadas não vejo a carteira azul, em forma de envelope, com o desenho de um sol na frente, o nome “Fulgor”, na carteira de cigarros que meu pai fumava! Céus, como estão distantes, no tempo, as fotos dos artistas do cinema americano – brindes do sabonete Eucalol, com que minhas irmãs se banhavam, para fazer a coleção – astros e estrelas como Robert Taylor e Joan Crawford, Humphrey Bogart e Lauren Bacall, Judy Garland e Cary Grant, Burt Lancaster e Betty Davis, todo mundo em Sorocaba cuidando de se parecer com eles nos espelhinhos circulares tirados do bolso das camisas (com brasões dos grandes times de futebol, no verso), meu remoto cunhado Homero esmerando-se no bigode fino e cabeleira à Clark Gable, minhas irmãs com tranças ou redes nos cabelos fartos!

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Como eram silenciosos os nossos jantares, todo mundo calado, “porque a mesa – o velho impunha – é um lugar sagrado” - a chuva e o frio intensos lá fora -, meu pai na cabeceira, eu e meu irmão Ney – Waldeney -, num pesado banco à direita, minhas duas irmãs – Wandyr e Wilma - noutro banco igual, à esquerda (todos os móveis feitos pelo seu Fortunato Solha, operário da Estrada de Ferro Sorocabana), minha mãe – Dona Ermelinda - servindo a sopa (que fumegava até a lâmpada acesa, suspensa do teto), o grupo numa composição que associo hoje à do “Comedores de Batatas”, de Van Gogh!

Os comedores de batata, 1885 / Museu Van Gogh (Amsterdam) Vincent Van Gogh
Como eram demoradas as viagens de trem, a maria-fumaça - frenética - lá na frente, passando por cidades cheias de terrenos baldios (como nos filmes de Carlitos), percorridas (mas não muito) por fords V-8, caminhões Chevrolet-Gigantes, “baratinhas”, carros movidos a gasogênio (meu deus, como isso está remoto na minha memória!), além de muitas carroças e elegantes charretes. Como me fascinava, nos anos 50, a progressiva beleza feminina à medida em que eu chegava de ônibus ao centro da capital paulista, as mulheres, ali - todas - de chapéu e luvas, como nas propagandas de Vida Doméstica, O Cruzeiro e Alterosa!

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Quantas longas madrugadas em claro, na casa onde nasci (da qual saímos quando eu tinha seis anos e meio) com os rumores noturnos das fábricas da cidade, das multidões de operários subindo e descendo a nossa rua nas trocas de turnos, os longos suplícios dos cavalos na íngreme ladeira que tinham de enfrentar para levar carroças cheias de verduras ao mercado, eu sofrendo com eles ao ouvi-los escorregando as ferraduras nos paralelepípedos lisos , soltando faíscas, caindo de joelhos sob o estalo dos chicotes.

Munic. Sorocaba
Como demoravam a chegar os natais, quando eu infalivelmente recebia um Almanaque do Tiquinho e da Vida Infantil, anos depois os de Vida Juvenil, eles sempre me deslumbrando... até que minha era da inocência acabou! Como foi interminável a reta que enfrentei dirigindo, nos pampas, de Assunção a Buenos Aires, em 76! Como foram vastos os dias e as noite em que passei na UTI, em março de 2022, depois do infarto! Como foram longas as gestações de meus dois filhos! Dois anos entre as filmagens de O Som ao Redor e a estreia dele em Gramado!

Como foram longas as doze horas de voo sobre o oceano, para que chegasse a Lisboa - para, de lá, ir a Madri, Londres, Paris. Tive tempo de ler quatro vezes o vasto Ulisses de Joyce, quatro - o imenso Grande Sertão: Veredas! Quantas vezes reli o Hamlet, o Novo Testamento, o Êxodo e o Gênesis, os Salmos e o Eclesiastes! Quantas vezes reli Augusto dos Anjos e Sérgio de Castro Pinto! E quantas horas passei nos cinemas, vendo e revendo a trilogia do Poderoso Chefão e os extensos El Cid, Ben-Hur, Dez Mandamentos, Spartacus, 2001, Deus e o Diabo na Terra do Sol, E o Vento Levou, todos aqueles filmes de Bergman e Woody Allen, Resnais, Godard e Truffaut, Fellini, Rossellini, Visconti, Bertolucci, e Antonioni! Quão distantes os seriados de Flash Gordon!!!

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Agora mesmo me dei ao luxo de interromper o sexto "tratado poético-filosófico" - que vem de Trigal com Corvos, Marco do Mundo, Esse é o Homem, Vida Aberta, e 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite - para tramar esta AUTO B/I/O GRAFIA, porque preciso dela para voltar aos versos. Ah, eu tive tempo demais pra ver "o orvaio beijando as frô / Ver de perto o galo campina, / que, quando canta, muda de cor!” Talvez porque tenha aprendido, desde cedo, o que o imperador Augusto ensinou, lá no tempo do ronca: — "Festina lente". — Apressa-te lentamente"!

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  1. Anônimo7/1/23 08:36

    Esplêndido!

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  2. Anônimo7/1/23 10:56

    O passado emergindo em cada frase e num vertiginoso crescente tornan. do-se presente.

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