Para Hildeberto Barbosa Filho
De palavra em palavra sai brotando o poema. No negro maior que foi Cruz e Souza basta, absoluta, a palavra, a bólide. Em Casimiro de Abreu ela desanuvia em “Meus oito anos”, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais. Em nosso Augusto é música, número, estalactite, filosofia, verme, energia, o eu e o cosmo. Nenúfares? Não, longe de Augusto os nenúfares.
De que é feita, então, a poesia? Em João Cabral ela se tece de galo em galo, tecendo a manhã. Em Chaplin ela emana de um momento — apenas um momento — o do vagabundo de vestes negras e rotas, de flor ao nariz e o olhar súplice a se pendurar na candura da florista cega. Ela nem vê que ele cheira a flor com o olhar nela.
Descíamos no elevador daquele prédio escuro, hoje desamparado, esquina do Ponto de Cem Réis com a Visconde de Pelotas. Como faz tempo isto! Ali comprimidos, ninguém sabendo quem era ninguém, todos fechados em si mesmo em seus problemas, muitos de saúde. Elevador para 400 quilos, todo esse peso contraído no rosto dos quatro ou cinco ocupantes. Uns de cabeça baixa, todos só olhando para dentro de si.
Faltando três ou quatro andares entra uma menininha. Sozinha, despachada, com alguma intimidade com o velho ascensorista. Olhou-nos um a um com simpatia e falou ao ouvido do velho. Os dois riram a bom rir, não se sabe de quê, e o riso saiu se espalhando por todos nós.
Alegria sem precisar de motivo.
Chega-se ao térreo, ela abre os braços, volta-se para o seu público e salta de costas com um “tchau, pessoal!” acenado entre as duas mãos pequeninas.
Poesia gestual? Onde entra aí essa deusa da graça e do privilégio humano?
É pergunta que acaba de fustigar minha experiência de vida ao chegar à última linha do poema que abre um novo livro de Marcus Alves, “Ninguém ensina a dizer adeus” é o poema.
Acompanhe-me, por favor, leitor amigo:
“Era manhã de domingo.
Os dois coveiros se revezam no trabalho.
Um abaixo do sepulcro
retira restos de madeira do caixão
com a areia misturada aos ossos.
Na parte de fora outro homem vai
juntando os restos daquela vida. Recolhe
Ossos da mão
da perna
À minha frente vejo o crânio da mulher
Preservado.
O cabelo, aloirado, ainda estava lá.
O homem, sem luvas, sai remoendo pequenas palavras ao vento — o que nos resta da vida
(...) Naquela manhã
sem sol
enterro um pedaço do meu passado
e lanço
um adeus à minha infância. Alô, mamãe!
Por que eu fiquei com a tarefa mais árdua? Mamãe, eu só queria lavar os pratos agora e ir brincar na rua.
Estou aqui vendo seus ossos nus.
Sem poder sequer lhe dar um abraço.”
Os dois coveiros se revezam no trabalho.
Um abaixo do sepulcro
retira restos de madeira do caixão
com a areia misturada aos ossos.
Na parte de fora outro homem vai
juntando os restos daquela vida. Recolhe
Ossos da mão
da perna
À minha frente vejo o crânio da mulher
Preservado.
O cabelo, aloirado, ainda estava lá.
O homem, sem luvas, sai remoendo pequenas palavras ao vento — o que nos resta da vida
(...) Naquela manhã
sem sol
enterro um pedaço do meu passado
e lanço
um adeus à minha infância. Alô, mamãe!
Por que eu fiquei com a tarefa mais árdua? Mamãe, eu só queria lavar os pratos agora e ir brincar na rua.
Estou aqui vendo seus ossos nus.
Sem poder sequer lhe dar um abraço.”
E vem o final:
“Você, mamãe, não me ensinou a dizer adeus. E eu saí por aí,
numa manhã de domingo desenterrando seu corpo
para dizer adeus a mais um irmão.”
numa manhã de domingo desenterrando seu corpo
para dizer adeus a mais um irmão.”
Insiste o velho cronista, em momentos como este ainda não enfadado: de que é feita a poesia?