Que seria de nós se não fossem as lembranças?... Guardadas na memória, essa dádiva que o cérebro esconde em seus mistérios são tijolo...

Como o cheiro de uma flor

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Que seria de nós se não fossem as lembranças?... Guardadas na memória, essa dádiva que o cérebro esconde em seus mistérios são tijolos com os quais se erguem nossa história, sentimentos e emoções que emolduram a consciência e que nos acompanharão seja aqui ou acolá.

Chris Curry
Vão e voltam com a música, cheiro, gosto, e “déjà vu”, de um lugar que já estivemos, um crepúsculo ou alvorada, um luar na balaustrada, como aquele nem sei onde...

E o sol lá de Camogli, que descia mar abaixo além do Mediterrâneo? E o Sena no inverno, correnteza e vento frio sem tirar sequer um triz da beleza de Paris? E o passeio lá em Mikonos, quando apenas em um dia contornamos toda a ilha?...

Não somente de viagens seja feito o passado. Quanto mais for variado o painel de sua vida, mais é sábia a jornada a levar pela memória. Não somente de alegria ou da vã filosofia, já que na melancolia é que a gente pode ver como é grande a diferença do sabor da ilusão comparado à emoção. Mas que não se menospreze o prazer de ser feliz, pois Jesus advertiu que o reino de seu Céu é repleto da inocência, da pureza de uma criança.

A Cantata que ora ouço está chamando pra acordar e “ouvir a voz que clama”. Foi o título que deu Bach a esta joia do Barroco; que jamais esquecerei, quando um dia eu senti que é na música que Deus fala para quem quiser ouvir. Mas não é em qualquer som que os anjos fazem coro, e sim naquela flauta da Gavota de Rameau. A que ele dedicou “para as flores e o Zephir”.


Primavera já se foi, e fechou-se ao verão. Quem tem olhos para ouvir observa que as tardes se colorem de outro tom. O crepúsculo se abrilhanta e as nuvens são esparsas. Como é linda essa passagem que tanto nos ensina. Mostra como tudo passa, sem findar-se, vai mudando. Na folha que secou, há beleza do passado, que é tão presente ainda na eterna mutação. Mesma coisa é quando vejo nos que já viveram mais, um semblante a demonstrar que, há muito, disso sabem.

Ricardo Angel
Hoje à tarde vi no mar, tudo isso que lhes digo. Pois as ondas sussurravam bem acima do normal. Com o céu dialogavam sobre deuses e adeuses, primavera e verão. Ainda bem que neste mar, refletindo o pôr do sol, é possível entender que a fé jamais se perde. Estações aí estão pra dizer o que se vê em qualquer lugar do mundo onde há amanhecer.

Eis que o dia vira noite, madrugada na manhã, lua que se faz crescente. Coisa boa é o silêncio, que ora se aconchega. Quanta gente ignora o que tanto ele nos diz... Tente ouvir a sua voz que o vento faz cantar, ou daquele bem-te-vi que nos chama acolá. Tente ouvir até estrelas, como quis o tal poeta. Só assim a natureza poderá
Ricardo Angel
lhe abençoar confessando um segredo que você só saberá quando souber se calar.

Mas voltemos à memória, o tesouro indelével que nos cobre de passado, de futuro e de presente. É feliz quem nunca tem na lembrança um dissabor. E ainda mais feliz é aquele que já sabe que nem sempre a alegria tem o dom de ensinar. Quantas vezes é possível na tristeza refletir, e além do sofrimento aprender que tudo passa. Que depois de uma noite, bem dormida ou mal vivida, surge um dia todo novo a mostrar que a vida segue.

Mais na frente, são somente as lembranças que farão sua vida parecer que valeu ou se perdeu. Então pense, desde já,que é melhor viver no bem, ouvir Bach e ser feliz. Faça amigos, dê abraços, veja a lua, olhe o mar, sinta a chuva e o sossego.

Ame sempre, sem limite. Não critique, compreenda. Nunca faça pra ninguém o que seja pra você lamentável ou desprezível. Só assim suas lembranças seguirão sua imagem como o cheiro de uma flor.

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