“Quando eu não mais existir. Quando tudo o que fui tiver se convertido em pó, tu, minha única amiga, que eu amei tão ternamente e tão profundamente, tu, que sobreviverás a mim, não visites meu túmulo. Ali, nada haverá para fazeres. Não me esqueças, mas não me tragas à tua mente em meio aos teus afazeres, alegrias e necessidades. Não quero perturbar o curso da tua quieta vida. Mas, nas horas de solidão, quando aquela tímida tristeza te visitar, pega um dos nossos livros favoritos e procura neles as páginas, as linhas e as palavras que costumavam – lembras? – trazer doces e silenciosas lágrimas aos olhos de nós dois, simultaneamente. Lê, fecha teus olhos e estende tuas mãos ao teu ausente amigo. É um conforto para mim, agora, pensar que um leve toque então alcançará as tuas mãos. Tu, a quem eu amei tão ternamente, tão profundamente”.
Leu as palavras dele ainda uma vez e aconchegou o papel junto ao peito. Setembro veio e se foi em tão curto tempo, pensou ao contemplar pela janela da silenciosa dacha as primeiras folhas do outono flutuarem suavemente em direção ao chão. Logo seria inverno, a geada congelaria sobre as vidraças; no quarto queimaria uma vela solitária e ela se sentaria encolhida em um canto qualquer. Na memória, as linhas continuariam ecoando e ecoando. O homem desaparece; a arte é eterna.
A milhares de quilômetros dali, a Rússia homenageava seu grande escritor. Choravam os poetas, os camponeses, as tílias, os niilistas, Yermolai, os livros nas estantes. Em Bougival, ela continuava a observar a queda incessante das folhas amarelas e vermelhas como se fosse o mais importante evento do dia. Permaneceu firme, olhando para fora enquanto, na lareira, ardiam palavras de amor. Queimou-as quase todas.
Quarenta anos antes, ele havia entrado no grande salão do teatro com a segurança tola de jovem aristocrata e poeta que colecionava paixões. Dostoievski não escondeu a admiração: “Que homem! Escritor talentoso, bonito, rico, inteligente, educado, 25 anos. Eu não sei o que a natureza lhe recusou”. O Barbeiro de Sevilha era a ópera da noite e ele estava ansioso para ouvir a mais famosa estrela da Europa, Pauline Viardot. Aos 22 anos, ela dominava a cena cultural. Berlioz a havia chamado de voz perfeita, George Sand a converteu em heroína de romance e Michelet a havia listado entre as mais atraentes mulheres francesas de sua época. Quem não desejaria ver de perto tal diva? Ela surgiu em cena. Uma presença arrebatadora, feita de olhos escuros e longos cabelos negros. Não era a mais bonita mulher que ele já vira, mas quem se atreveria a lhe resistir? A ela Alfred de Musset havia oferecido versos e sua mão de poeta, em uma ousada proposta de casamento que a dama recusou.
Após a apresentação, ele foi cumprimentá-la. Levou rosas, belas e frescas – uma raridade no inverno de São Petersburgo. Pauline estendeu-lhe as mãos pequenas. Ele as beijou e, ao levantar os olhos, viu pela primeira vez o que os jornais se acostumaram a chamar de “sorriso cruelmente doce”. Combinava com a fama de mulher inteligente e espirituosa. Algo os uniu de imediato. Talvez a afinidade inescapável entre um escritor e uma mulher versada em literatura europeia, musa de tantos. Quem ousaria explicar o que liga instantaneamente pessoas que jamais se viram antes mas que, tão logo se encontram, parecem destinadas a jamais se separarem? Nem eles mesmos compreenderiam jamais e, por anos a fio, tentariam decifrar o mecanismo que os pôs cativos um do outro pelo restante de suas vidas.
Minutos depois foi apresentado ao marido dela, Louis, vinte anos mais velho. “Um jogo cruel dos deuses”, foi o único pensamento que Ivan se permitiu diante do Sr. Viardot. Naquela mesma noite, a lua estava alta no céu quando ele atravessou São Petersburgo com um prazer renovado. O branco do inverno russo cobria as árvores, o Neva, os edifícios, os rostos de pedra das estátuas. Um véu de noiva sobre a cidade. Soltou a rédea dos cavalos e o vento gelado feriu seu rosto. Os cabelos loiros já não estavam impecáveis. Em Senatskaia Ploshchad, recitou Pushkin em voz alta.
“Eu amo você, filha do Grande Pedro. Amo sua severa graça… Amo”.
Deu-se conta naquele instante, diante da estátua de Pedro, que amava algo muito mais que a São Petersburgo. Amava uma mulher de olhos escuros, que ele via e decifrava como nenhum outro seria capaz. Era o ano de 1843 e ele sussurrou para si mesmo: “Gostaria de não ter dito ‘eu te amo’ antes deste dia”.
Nos dias seguintes, Ivan gravaria na memória cada detalhe dela: o nariz grande e bonito; o brilho do cabelo e os olhos, cinza-escuros, com um anel preto ao redor das pupilas. Olhos esplêndidos e triunfantes, por vezes irônicos, por vezes doces. Repetiu para ela como se encantava quando a via mexendo as mãos enquanto falava, disse o quanto amava a sua voz, fez cara de enfado enquanto ela chorava de rir de alguma bobagem ou fazia caretas divertidas, enrugando os olhos e o nariz.
Seguiu Pauline e o marido pela Europa. Precisava estar perto dela. Ao tomar posse da herança, libertou os camponeses e se pôs a escrever. Descreveu as cores, sons e perfumes da Rússia com rara perícia. Os livros lhe renderam sucesso e mais fortuna. Um deles fez o czar abolir a servidão humana, ao custo de dois anos de prisão domiciliar para o autor.
O amor pela amiga era claro a quem quisesse ver. E numa noite em que nenhum sentimento mais cabia na prisão do corpo, explodiu em beijos intensos, em toques delicados, em promessas que jamais se cumpririam, em poesia. Afastaram-se, desesperados de pavor e culpa, mas o amor permaneceu, rugindo na carne e no espírito. Indomável.
As cartas os uniram por anos, até que voltaram a se encontrar. Já não tinham mais vinte anos e isso não tinha a menor importância. Construiu uma dacha, casa de campo russa, nos fundos da mansão que comprou para ela e o marido em Bougival. Nas noites de verão olhavam juntos para as estrelas, aspirando o ar quente e perfumado de lima e de flores. Ela tocava piano, compunha, cantava. Ele escrevia.
Em maio de 1883, Louis morreu, mas os deuses já haviam jogado um novo dado no tabuleiro das ironias que regem a vida dos mortais. O fio da vida de Ivan se rompeu três meses depois.
Ela viveu por muitos anos mais. No seu quarto de avó, uma vela piscava e apagava, sombras dançavam sobre o leito. De quem é essa tosse rouca e oca? Estou com frio e todos eles estão mortos.
Contavam os netos que, minutos antes de partir, ela estendeu as mãos para o vazio, fechou os olhos e contou que em algum lugar, há muito, muito tempo, havia lido um poema. Esquecera quase todos os versos, apenas a primeira linha ficou na memória: “Como eram lindas e frescas as rosas”.
Nota da autora:
Os personagens desta história são o escritor russo Ivan Turgueniev e a cantora franco-espanhola Pauline Viardot.
– Este texto originalmente integrou a série O amor é uma máquina de moer esperanças, uma parceria entre os escritores Sonia Zaghetto e Cláudio Chinaski.
– O trecho inicial, aspeado, é a carta de despedida de Turgueniev a Pauline Viardot. Traduzi do inglês.
– O poema “Como eram lindas e frescas as rosas” é de autoria de Turgueniev.
– Neste texto há trechos de cartas, do poema acima citado e do romance “Águas de Primavera”, de Ivan Turgueniev.
Os personagens desta história são o escritor russo Ivan Turgueniev e a cantora franco-espanhola Pauline Viardot.
– Este texto originalmente integrou a série O amor é uma máquina de moer esperanças, uma parceria entre os escritores Sonia Zaghetto e Cláudio Chinaski.
– O trecho inicial, aspeado, é a carta de despedida de Turgueniev a Pauline Viardot. Traduzi do inglês.
– O poema “Como eram lindas e frescas as rosas” é de autoria de Turgueniev.
– Neste texto há trechos de cartas, do poema acima citado e do romance “Águas de Primavera”, de Ivan Turgueniev.