Estou lá. Cenário da vida real e figurino à paisana. Atuação moderada e impagável de alguém que sabe seu lugar na realeza das ruas. Só...

A respeito do seu lugar na realeza das ruas

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Estou lá. Cenário da vida real e figurino à paisana. Atuação moderada e impagável de alguém que sabe seu lugar na realeza das ruas. Só para me descolar da ficção, entro em casa. Tiro os sapatos para não levar pra dentro a podridão externa porque a interna exige muito de mim. Estou com fome e fico em dúvida entre champignon e a pilha de livros que me espera. Salvamento automático do texto e não me preocupo com sinônimos para a linguagem que esqueci. A página inicial foi escrita há um certo tempo e sem mapas. Apenas um local de identificação e caneta. Combinei comigo mesma que preciso me reconhecer nas palavras impressas.

O escritor é um quebra-cabeças coeso e o desenho e assinatura de quem escreve são inconfundíveis. Basta um detalhe e todos sabem que sou eu e não outro ali. O escritor está protegido no texto. Nada me parece mais confiável do que o conjunto de palavras que organizamos a nosso bel prazer.
Ali o inimigo só entra com a nossa autorização. O inimigo também precisa de um livro para chamar de seu e, por ter coração, acha fofo o que escrevemos. O texto faz isso: coloca-nos em situação de extrema fragilidade e ficamos à disposição um do outro, prontos para conquistar e sermos conquistados.

Quando estou fraca e cansada, a escrita renova-me. É mais real do que os olhos do leitor podem ver. O uso adequado da língua é o meio mais sutil de fugir da afronta dos discursos da oposição. Tenho lido alguns. Eu coloco os meus olhos e ouvidos de molho antes de produzir a oposição da oposição. Depois do último texto escrito no dia, encerro o serviço de delivery para escritores parceiros, antes dos sofisticados ataques que sofreremos no dia seguinte por quem não nos compreende.

Para sobreviver aos ataques de coletivos estressados, nada melhor do que pensar o mundo como um mapa em movimento. [Meninas, guardemos todos os nossos rascunhos. Tudo o que vai, volta]. Façamos de uma vida comum um tesouro a ser descoberto. Haja tempo para atendimento ao leitor. Mas eu gosto do que faço. Então tá. Não está mais aqui quem falou. Serão úteis um dia a regularidade nas ideias e posicionamentos, que dificilmente mudam com o passar do tempo. O que pode acontecer é o escritor sofisticar os argumentos para explicar por que ama ou detesta alguma coisa. Fora isso, uma vez assumido um determinado posicionamento, eternizá-lo é coisa certa. Pausa para um café.

O escritor ama ver cada letra sua na boca do povo. A escrita é democrática. Tem para todos os bolsos. Escritores têm vendidos alguns ou muitos exemplares de sua experiência de vida transformada em personagens, mas possíveis aplicativos nocivos se aproximam para dizer que tudo aquilo que você escreveu não vale a pena. Eu digo que vale. Tais aplicativos ainda não conquistaram um lugar na realeza das ruas e das bibliotecas. Para isso, é preciso ter majestade. Somente assim não haverá quem derrube o teu castelo, construído a duras penas.

O escritor sabe: o céu e o inferno cabem em nós. Qual você prefere? Pense bem na resposta. [Qualquer equívoco, neste caso, pode ser fatal. Nem sempre ir de um extremo ao outro pode ser bem aceito]. Nem sempre ir de um extremo ao outro é um equívoco.


Quando o espelho entra em cena

Olhar para si exige atenção. Difícil escolher entre céu e inferno. Nem só o escritor precisa fazê-lo. Toda espécie de formadores e formadoras de opinião também precisam fazer essa escolha. Tem que dar satisfação ao outro. Dá trabalho, gera polêmica nas redes sociais e na sala de estar. Não quer ser motivo de discórdia dentro de casa? Escreve teus rascunhos e esconde-os por um tempo, longe dos olhos de quem pretende jogá-los fora na sexta-feira, dia de faxina. São interessantes e desorganizados meus rascunhos. Somente eu entendo minha própria bagunça. Confesso que é preciso trocar a palavra, tirar um bloco daqui e trocar de lugar com outro,
suavizar a expressão para disfarçar o ataque.

Rascunhos de escritor são plenamente compreendidos apenas por ele. Um mundo indecifrável dividido em cadernos caros e baratos onde rabiscos nem sempre são apenas rabiscos. Até que a costura final chegue ao leitor, muitas provas são realizadas. [Que as roupas sejam adaptadas a cada integrante do corpo social].

Olhar para si não é simples, imaginem olhar para o outro e colocar na boca dele palavras que talvez não saiba exprimir, mas os olhos declaram. Eu olho para os olhos do leitor e retiro dali o que será colocado em algumas páginas. As outras nascem da reflexão que faço a meu respeito em frente ao espelho. Uma coisa eu garanto: não faltará assunto.


Como é difícil encarar-me. Gosto de estar sozinha, mas conversas ao pé do espelho são pouco confortáveis. Olhos nos olhos dos outros é refresco, mas olhar em nossos próprios olhos é um convite à fuga. Nesse exercício, há um leque de opções: autoanálise, vergonha, medo, culpa. Cabe também a vontade de contar ao espelho tudo o que fiz no recomeço para superar os traumas. Parece-me uma boa escolha. [Na falta de um diário ou de um inimigo que aprenderá a te aplaudir na marra, converse com teu espelho].

Conversas ao pé do espelho podem ser demoradas. Não há previsão de texto quando ali estamos. Escolhemos a língua e o tempo. O duro é despejar tudo de uma vez, então, optamos por confissões em doses homeopáticas. É menos doloroso, mas também não há julgamentos. Isto os outros fazem de sobra porque o peso dos problemas deles parece mais leves quando pensam em nossas vidas. Tudo o que é do outro é mais doce. Como ficam bonitinhos os nossos problemas passeando em bocas alheias! Parecem tão simples. Acordamos, saímos para trabalhar e há quem cuide de nossos problemas mais do que nós mesmos. Nem é necessário pagar. Quando chegamos em casa, estão ali, bem cuidados e alimentados, ainda que sem uma solução eficaz. Tomamos banho, tiramos o espelho do quarto para melhorar a qualidade do sono. Amanhecemos na certeza do quanto nos enxergamos.

Janeiro, dia nove. Um dia após a falta de noção, percebemos a importância de nos olharmos no espelho, diariamente. Essa prática pode ser individual e é a imagem desse indivíduo que é refletida. Mas quantos séculos estão encaixados ali naquela personalidade e nem sempre o espelho consegue captar. A relação eu-outro e com a vida está em nossos corpos. Definitivamente, não há espelho que dê conta de tamanha complexidade. E então, vai sobrar para quem ouvir o acúmulo de nossas insuficiências?


O compartilhamento de experiências da vida acontece de inúmeras formas. A mais adequada não cabe a mim dizer. Guardar comentários de si mesmo no inconsciente pode alterar o layout das relações sociais, então, tornar-se “biografável” a si e ao mundo talvez seja interessante. Guarde anotações de si no diário ou nos cadernos caros e baratos porque estes são lugares onde você pode ocupar o espaço que bem entender, sem formalidades. Quem encontrá-los compreenderá a tua e a minha biografia.
Transitamos sem freios pelas linhas do diário e da fotografia. Menos mal a quem nos quer por inteiro. Século vinte e um e parece não haver rodeios a quem quer se expor. A partir da fase pós-feto começamos a nascer ficcional e historicamente. A quem quiser me escrever, não faltará assunto.


Estou agora em meu escritório. Dia dez de janeiro de 2023 e, ainda na cama, vi uma boca espumando de ódio e a balbúrdia tentando institucionalização. Na TV todos os canais falam do mesmo assunto e tento fugir um pouco porque é muito pesado. Diante da complexidade da vida, nada melhor do que dar uma pausa para mais um café às 10:39. Para o texto maturar.

Enquanto isso, assisti novamente Só dez por cento é mentira e ouvi comentários a respeito das fotografias. No início do documentário, afirma-se que parte da humanidade reverenciava o processo fotográfico como prova inquestionável de que as coisas são o que são. Nisto a fotografia e o espelho se parecem. A fotografia capta e congela um instante. O espelho é um pouco mais cruel: não nos deixa esquecer que o instante acerta, erra e, às vezes, amadurece. O instante somos todos nós. Sejamos amigos do espelho nosso de cada dia. Ah, lembre-se: sete anos de falta de sorte a quem quebrar este “inutensílio”. [Ainda sem comprovação científica].

Filme para te inspirar enquanto você toma um cafezinho: "Só dez por cento é mentira", documentário da Netflix. Indicação livre.

Leitura para quando nem o café é suficiente: "Olhando para o outro": a partir de fotografias, pesquisadora analisa fenômeno dos zoológicos humanos. Disponível neste link (acesso em 10.01.2023)

Para quem aprecia obras de arte: "O falso espelho". René Magritte. Óleo sobre tela. Acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.


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