Voltemos a Victor Hugo. Desta vez, não peço mais desculpas ao meu leitor. Não é por desatenção, mas porque este texto é a complement...

A epopeia de um homem só (ou Revenons à Hugo)

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Voltemos a Victor Hugo. Desta vez, não peço mais desculpas ao meu leitor. Não é por desatenção, mas porque este texto é a complementação do anterior, Traduzindo uma página de Victor Hugo ou o Titã-Anão. Hugo é grande, sua grandeza literária e humana ultrapassa todas as barreiras, destacando-o de uma miríade de escritores medíocres, que sequer fazem sombra a seu calcanhar. Movido por essa grandeza, ele escreveu grandeza maior, Os trabalhadores do mar (todas as referências serão retiradas da edição Notre-Dame de Paris/Les travailleurs de la mer; textes établis, présentés e annotés por Jacques Seebacher et Yves Gobin, Paris: Gallimard, 1975).

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Victor Hugo ▪ 1802—1885
Vimos, no texto passado, como o escritor constrói a concepção da hipocrisia e cria o perfil do hipócrita, na figura do personagem Clubin, “o Tântalo do cinismo” (Primeira Parte, Senhor Clubin, Livro VI, O timoneiro bêbado e o capitão sóbrio, Capítulo VI, “Um interior de abismo, aclarado” p. 786), cuja síntese é a do perverso que engana todos, rouba, faz naufragar a nau que dirige e ainda se sai como salvador da pátria. Hoje, veremos o seu contraponto, o personagem Gilliatt, “uma espécie de Jó do Oceano” (Segunda Parte, Gilliat Le Malin, Livro II, O trabalho, Capítulo IV, “Sub re”, p. 873). Este, na esperança de casar com Déruchette, enfrenta uma prova sobre-humana: tentar salvar dos destroços da Durande, a máquina do navio, entre os escolhos dos rochedos Douvres, no meio da Mancha (“A grande Douvre era sua casa; a Durande era o seu canteiro.”,
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François Chifflart
Segunda Parte, Livro Primeiro, O escolho, Capítulo VII, “Uma cama para o viajante”, p. 836).

Gilliatt enfrenta vários desafios, vistos por muitos intransponíveis: a falta de ferramentas, o trabalho solitário, a fome, a sede, o frio, a condição inóspita dos rochedos, o tempo que age contra tudo e contra todos (“Privações de um lado, cansaço de outro, ele emagrecera. [...] Ele tinha fome, tinha sede, tinha frio.” Livro II, O trabalho, Capítulo IV, “Sub re”, p. 868-9). Os desafios mais ferozes, no entanto, são o mar e a tempestade, que ele consegue com tenacidade domesticar, e o polvo que quase o devora. Gilliatt realiza uma proeza homérica, ao salvar a máquina da Durande, lutando, ao mesmo tempo, contra a tempestade e as forças descomunais da natureza, tendo, como um ciclope, não só de forjar as próprias ferramentas, mas de criar a própria forja, das asperezas e concavidades que o rochedo lhe proporcionava – “Gilliatt sentiu uma altivez de ciclope, senhor do ar, da água e do fogo” (Segunda Parte, Livro I, O escolho, Capítulo X, “A forja”, p. 846):

“Por combustível, ele tinha os destroços; por motor, a água; para soprar, o vento; uma pedra por bigorna; por arte, seu instinto; por potência, a sua vontade”
Livro II, O trabalho, Capítulo I, “Os recursos daquele a quem tudo falta”, p. 861
François Chifflart
A saga de Gilliatt é, sem sombra de dúvidas, uma passagem épica que, em determinados momentos, rivaliza com a empresa de Jean Valjean nos esgotos de Paris, para salvar Marius, em Os Miseráveis. Só não é maior simbolicamente, pois uma ação individual, como a de Gilliatt – “uma luta do Nada contra Tudo, uma Ilíada de um só” (Segunda Parte, Gilliatt Le Malin, Livro IV, Os duplos fundos do obstáculo, Capítulo VI “De profundis ad altum”, p. 953) –, jamais poderá superar uma ação coletiva, representada pelo gesto altruísta de Jean Valjean, que, indo além de salvar Marius, salva a centelha de liberdade, acesa pelos jovens estudantes, revolucionários da Sociedade do ABC, contra a monarquia. A diferença está em que Gilliatt não se encontra apenas sozinho, ele não tem nada a seu favor, tendo que tirar partido do que a adversidade lhe oferece:

“Tudo contra ele, nada para ele; ele estava isolado, abandonado, enfraquecido, minado, esquecido”
Segunda Parte, Livro II, Capítulo IV, “Sub re”, p. 871
François Chifflart
Ele possuía, contudo, uma tenacidade que o instigava ao desafio assumido. Tenacidade construída no esforço, da paciência e na criatividade, que faziam dele um “Jó Prometeu” (p. 873). Na realidade, Gilliatt resume em si uma Ilíada e uma Odisseia, combatendo contra inimigo, vencendo-os e retornando ao lar, em busca de obter a felicidade prometida.

A outra grande batalha de Gilliatt é contra a sombra, “a imensa canalha da sombra” (Segunda Parte, Livro III, A Luta, Capítulo I, “O extremo toca o extremo e o contrário anuncia o contrário”, p. 897), em sua dupla face de tempestade e de polvo (la pieuvre). Contra a tempestade, o embate é desigual, mas a tenacidade e a perseverança de Gilliatt o agigantam contra a terrível força da natureza, a quem ele vence com o denodo de um herói homérico, num momento inesquecível do livro (Segunda Parte, Capítulo VI, “O Combate” p. 907-925). A luta é clara, em céu aberto, com os contendores sabendo da força e dos limites de cada um. Contra o cefalópode que se metamorfoseia e prefere a sombra, para atacar de surpresa,
François Chifflart
o combate é tão desigual, quanto sorrateiro e solerte. Na construção do polvo, encontramos a explicação detalhada do animal. Hugo transcende a pura biologia e penetra no terreno da subjetividade e da psicologia, comparando o octópode ao hipócrita, completando, assim, o perfil começado lá atrás, na Primeira Parte, com Clubin. Um arremate dos mais geniais.

Não é à toa que o Livro IV dessa Segunda Parte se chama Os duplos fundos do obstáculo ou, se quiserem, Os fundos falsos do obstáculo (Les doublés-fonds de l’obstacle). Homem e animal se confundem, na bestialidade que os habita, como um fundo falso numa gaveta. A partir daí, passamos a traduzir alguns trechos, sempre nos encantando com a visão mais aguda desse grande escritor. Por isto mesmo, Hugo deixou para trás, na sua época e hoje ainda mais, muitos que vivem mergulhados numa literatura, se assim se pode chamar, insulsa e sensaborona, e que tentam se impor, apesar da anemia profunda de seu conteúdo, cuja característica maior é a platitude de sua profundidade.

Voltemos, ainda uma vez, a Hugo:

O Monstro ▪ Livro IV, Capítulo II, “O monstro”, p. 931-938
“Para acreditar no polvo, é preciso tê-lo visto.
[...]
Orfeu, Homero e Hesíodo não puderam fazer senão a Quimera; Deus fez o Polvo.
[...]
De todos os animais, o polvo é o mais formidavelmente armado.
O que é, então, o polvo? É a ventosa.
[...]
A hidra arpoa o homem.
Victor Hugo
Este animal se aplica sobre a presa, a recobre, e a envolve com seus longos tentáculos.
[...]
Seus nós garroteiam; seu contato paralisa.
Ele tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a doença disposta em monstruosidade.
[...]
O polvo tem quase paixões humanas; o polvo odeia. Com efeito, em absoluto, ser hediondo é odiar.
[...]
O polvo em caça ou à espreita, se esquiva; ele se diminui, se condensa; se reduz a sua mais simples expressão. Ele se confunde com a penumbra. Tem o ar de uma dobra de vaga. Parece com tudo, exceto com qualquer coisa viva.
O polvo é hipócrita. Não lhe prestamos atenção e ele, bruscamente, se abre.
Uma viscosidade que tem uma vontade, nada de mais pavoroso! Visgo moldado em ódio.
[...]
Ele não tem ossos, não tem sangue, não tem carne. Ele é flácido. Não tem nada dentro. É uma pele. Podemos revirar seus oito tentáculos de dentro para fora como os dedos de uma luva.
Ele tem um só orifício, no centro de seu raio. Este hiato único é o ânus? É a boca? São os dois.
François Chifflart
A mesma abertura faz as duas funções. A entrada é a saída.
Toda a besta é fria.
[...]
A garra não é nada perto da ventosa. A garra é a besta que entra em nossa carne; a ventosa somos nós mesmos que entramos na besta. Nossos músculos se inflam, nossas fibras se torcem, nossa pele explode sob um peso imundo, nosso sangue jorra e se mistura detestavelmente com a linfa do molusco. A besta se superpõe a todos por mil bocas infames; a hidra se incorpora ao homem; o homem se amálgama à hidra. Fazendo-se um só. Este sonho está sobre nós. O tigre não pode senão nos devorar; o polvo, que horror! nos aspira. Ele nos puxa para ele e nele, e, ligado, enviscado, impotente, nós nos sentimos lentamente esvaziado nesse terrível saco, que é um monstro.
Além do horrível, ser comido vivo, há o inexprimível, ser bebido vivo.
[...]
Eles são os anfíbios da morte. Sua inverossimilhança complica sua existência. Eles tocam a fronteira humana e povoam o limite quimérico. Negamos o vampiro e o polvo aparece.
[...]
É certo que o povo, em uma extremidade, prova Satã, na outra.
É certo que o perverso, numa extremidade, prova a perversidade, na outra.
Toda besta malvada, como toda inteligência perversa, é esfinge. Esfinge terrível propondo o enigma terrível. O enigma do mal.”

Também não foi por acaso que Victor Hugo deixou para Gilliatt nos revelar o que acontecera com Clubin (v. Primeira Parte, Senhor Clubin, Livro VI, O timoneiro bêbado e o capitão sóbrio, Capítulo VII, “O inesperado intervém”, p. 792). Na luta contra o polvo Gilliatt descobre o cadáver de Clubin. Apenas o esqueleto e a bolsa com o dinheiro roubado restaram.
François Chifflart
A hipocrisia humana se defronta com uma hipocrisia metafórica, porém mais forte, e a ela sucumbe (Livro IV, Capítulo V “No intervalo que separa seis polegadas de dois pés há onde a morte se alojar”, p. 945):

“Um monstro agarrara o outro. O polvo pegara Clubin.
Havia ocorrido na sombra inexorável, quase o que se poderia nomear o encontro das hipocrisias. Houve, no fundo do abismo, a abordagem entre estas duas existências feitas de espera e de trevas, e uma, que era a besta, executara a outra, que era a alma. Sinistras justiças.”

Gilliat vencera tudo. As forças da natureza – o mar e a tempestade –, a dificuldade de resgatar, sem danos, a máquina da Durande; a difícil luta contra a avaria no casco de sua própria embarcação, a viagem de volta com o trabalho realizado. O seu feito maior, contudo, foi o duplo combate contra o mal. Vencera o corpo e o espectro da hipocrisia, o polvo e Clubin. Fizera mais, resgatara o dinheiro roubado e o restituíra a seu dono, Mess Lethierry, e, indo mais além das forças normais que constituem um homem, renuncia a seu prêmio, a bela e terna Déruchette. Vencedor dos inimigos mais terríveis, ele vence a si mesmo, na abnegação pela felicidade do outro. Nenhum herói o iguala (Livro IV, Capítulo VI, “De profundis ad altum”, p. 952):

“Ele vencera o isolamento, vencera a fome, vencera a sede, vencera o frio, vencera a febre, vencera o trabalho, vencera o sono. Ele havia encontrado para lhe barrar a passagem os obstáculos em coalizão. Após o desenlace, o elemento; após a maré, a tormenta; após a tempestade, o polvo; após o monstro, o espectro.”
François Chifflart
Como diz o título do capítulo em latim, Gilliatt foi do abismo ao alto, tudo para nos revelar que a persistência, a paciência, a tenacidade, a luta constante tem como prêmio revelar aos canalhas a existência de Deus e de sua justiça. “Il y a un Dieu, canaille!” é a frase com que Mess Lethierry invectiva contra Clubin, ao descobrir toda a história (Terceira Parte, Déruchette, Livro II, O reconhecimento em pleno despotismo, Capítulo I, “Alegria envolta de angústias”, p. 980).

Os Clubin são larvares e proliferam, pululam, num curto espaço de tempo cronológico. Os da cepa de Gilliatt são forjados um a um, temperados nas ciclópicas forjas divinas, ao sabor do tempo cósmico. Mas como a larva nada pode contra a têmpera do aço, a esperança é que a cada surgimento de um Gilliatt se redobre a esperança de que a Justiça se construa, lentamente, mas com uma direção inquestionável, como dizia Hugo, no prefácio do grandioso poema A legenda dos séculos, levando o homem das trevas ao ideal, na transfiguração do inferno terrestre no paraíso. De profundis ad Altum.

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