Alguns críticos jamais perdoaram a suprema heresia de Mario Quintana estrear com um livro de sonetos - "A Rua dos cataventos" (1940) - quando, na época, o próprio Modernismo já começava a ser questionado pelos que iriam mais tarde engrossar as fileiras da Geração de 45. Geração da qual só cronologicamente podem aproximá-lo, pois, embora tenha desde sempre cultivado o soneto, o fez descontraidamente, sem pompas e sem circunspecção, "filiando-se" muito mais ao humor e à ironia de 22 do que à sisudez dessa geração do pós-guerra. Em suma, cotejando-se os seus sonetos com os da Geração de 45, Quintana poderia ser considerado o sonetista que o Modernismo não teve, conquanto tenha sido um gazeador contumaz de todas as escolas...poéticas, inclusive da escola modernista, da qual evitou os excessos em troca de uma dicção lírica em muito tributária do Classicismo.
Daí a razão de alguns críticos situarem-no como um epígono de movimentos poéticos desde há muito postos em disponibilidade. Quer dizer, com relação a Mario Quintana, ora ele é considerado um neo-simbolista, ora um romântico tardio, mas nunca - ou só excepcionalmente - um poeta cujo ecletismo funde e inter-relaciona a tradição com a renovação.
Por isso tudo, a sua poética situa-se longe daqui, aqui mesmo, pois tal e qual a face bifronte de Janus, ela divisa, a um só tempo, o passado e o futuro, apesar de muitos incorrerem no equívoco de julgá-la distante da modernidade. Ou seja, movidos pelo preconceito, confundem soneto com anacronismo e descartam de antemão a possibilidade do poeta não só de inová-lo formalmente como também de assimilar uma linguagem cujo tom coloquial contrapunha-se ao discurso solene da época, principalmente ao da Geração de 45.
Já o humor e a ironia de Quintana, muito mais do que decorrentes da alegria que se estampa através do riso fácil, fundam-se e enraízam-se no riso difícil, cáustico algumas vezes, pungente outras, mas quase sempre oriundo de um aparente não-me-importismo ante as vicissitudes e agruras da vida.
Quanto aos problemas sociais, esses não adquirem contornos mais definidos em Quintana porque, na sua obra, "o social não está designado pelo poema: é o poema"*. Além do mais, o sentimento do mundo de Quintana passa, necessariamente, pelo crivo de uma visão intimista da realidade, o que embarga a fatura de uma poesia de cunho meramente doutrinário. Ou seja, os jargões, as palavras de ordem, o proselitismo, não encontram guarida nos seus poemas, pois, para ele, o social extrapola os estreitos limites dos credos políticos e religiosos para abranger, em toda a sua plenitude, os atos mais comezinhos e prosaicos da existência humana.
No que diz respeito às ressonâncias surrealistas de alguns dos poemas insertos em "Sapato florido" e "O Aprendiz de feiticeiro", mais uma vez configura-se o princípio segundo o qual a sua poesia, não obstante pareça nascer de algum lugar remoto, longínquo, origina-se daqui mesmo, sobretudo quando procura fazer do estranho o familiar, do distante o próximo. Aliás, já não disse o próprio Quintana "Que quadros são janelas abertas para o outro mundo deste mundo?" Pois bem, se "Quadros são janelas abertas para o outro mundo deste mundo", seus poemas também o são, na medida em que procuraram consubstanciar sensações incorpóreas, movediças, inefáveis - resgatadas daqui mesmo, do cotidiano, e devolvidas a este -, através do sortilégio e do poder transfigurador da linguagem poética.
Em 5 de maio de 1994 falecia o poeta Mario Quintana.
* CARVALHAL, Tania Franco. "Mario Quintana". In: "Autores gaúchos", número 6, 6a ed. Porto Alegre: Age/Universidade Luterana do Brasil/ Instituto Estadual do Livro, 1996, p. 16.
* CARVALHAL, Tania Franco. "Mario Quintana". In: "Autores gaúchos", número 6, 6a ed. Porto Alegre: Age/Universidade Luterana do Brasil/ Instituto Estadual do Livro, 1996, p. 16.