Acordar cedo, comer dois ovos e tomar um café frio, em seguida, escrever até a hora do almoço. Esta era basicamente a rotina de Victor Hugo, durante o seu exílio em Guernesey ou Guernsey, na casa – Hauteville House – que ele comprara, na ilha anglo-normanda. Depois de três anos ajeitando-a para abrigar a família, ele reservara para si o terceiro andar, muito simples, sem o conforto e os detalhes de decoração do restante do imóvel.
No terceiro andar, dividido entre um mirante e um pequeno quarto, Victor Hugo escrevia, contemplando a vista do mar e do céu, e quando fazia tempo bom, a costa da França, de que fora separado à força por quase vinte anos. Escrevia em pé, apoiando as folhas num púlpito. O antraz, desde 1858, lhe havia feito um grande mal às costas, e ele não podia permanecer muito tempo sentado. Em Guernesey, trabalhando em pé, terminou Os Miseráveis (1845-1862) e escreveu Os Trabalhadores do Mar (1866), dentre tantas outras obras.
A ilha de Guernesey foi onde Victor Hugo passou a maior parte de seu exílio. Após o golpe de Luís Bonaparte, em 1851, que ele apoiara para presidente, no advento da Segunda República francesa, em 1848, o escritor, deputado por Paris, encabeça a resistência contra o arbítrio, que terminaria na restauração do império, tornando Luís Bonaparte, Napoleão III. Admirador de Napoleão I, Hugo, apesar das boas relações com Luís Bonaparte, não suporta a supressão das liberdades republicanas e se põe contra aquele que ele chama, em livro-panfleto, Napoleão, o pequeno (1852). A saída que lhe resta é o exílio. Primeiro na Bélgica (Bruxelas e Anvers/Antuérpia, 1851-52), depois em Jersey, de onde é expulso (1852-55), e, por fim, em Guernesey, onde fica a maior parte dos quase vinte anos fora da sua amada França (1856-1870).
Libertário e humanista, Hugo não pode compactuar com um regime de exceção. Na sua passagem como deputado constituinte eleito em 1848, a sua presença e sua combatividade na Assembleia dizem muito do seu caráter: votou contra a pena de morte (já havia escrito antes, dois livros condenando a prática, O último dia de um condenado, em 1829, e Claude Gueux, em 1834), tomou posição cerrada a favor da liberdade de expressão e de imprensa, e acreditava que, com ações, mais do que com palavras, se podia acabar com a miséria. A sua atuação mais marcante, contudo, foram os seus discursos sobre a educação pública e laica sustentada pelo Estado. Um desses pronunciamentos, feitos em 10 de novembro de 1848, tornou-se o mais famoso de todos, com o escritor advertindo para o perigo da ignorância (o título original era Question des encouragements aux lettres et aux arts, mas ficou conhecido como Du péril de l'ignorance). Sendo a ignorância, no seu entendimento, pior do que a miséria, seria necessário “multiplicar as escolas, as cátedras, as bibliotecas, os museus, os teatros, as livrarias” (Du péril de l'ignorance, préface de Marie-Noël Rio, 4. éd. Paris: Les Éditions du Sonneur, 2010, p. 31, em tradução nossa). Não há como acabar com a miséria, sem atacar a ignorância. Em lugar de restrição de investimentos para a educação, é preciso sempre ampliá-los (p. 26).
É com este mesmo espírito, que Victor Hugo escreve, no exílio, em Guernesey, Os trabalhadores do mar. Para este livro, Hugo havia planejado um capítulo preliminar ou uma parte introdutória, chamada O Arquipélago da Mancha, escrito entre 1865 e 1866, constituído de 24 capítulos. O livro, contudo, não foi editado junto com o romance, no ano de 1866. A edição ocorreu, em separado, em 1883, dois anos antes da morte de Hugo, e só depois, ainda nesse mesmo ano, é que integraria, definitivamente, Os trabalhadores do mar, desde a edição ne varietur da casa Hetzal-Quantin.
Neste primeiro momento, gostaríamos de falar de O Arquipélago da Mancha (Les travailleurs de la mer; texte établi, présenté e annoté par Yves Gohin. Paris: Gallimard, 1975), depois, em outra ocasião, nos reportaremos ao romance.
O Arquipélago da Mancha pode ser lido separadamente de Os trabalhadores do mar. Este livro, no entanto, só ganha uma maior dimensão com o conhecimento daquela parte preliminar. Evidentemente, depois que os dois textos foram integrados a sua leitura conjunta não pode mais ser dissociada. Nas páginas de O arquipélago, Hugo derramou-se em informações várias, típicas de suas digressões como romancista copioso. Apesar da minúcia e do predomínio descritivo, nada há ali que possa ser dito excrescente. Tudo é necessário, como só Hugo sabe fazer: geografia, história, língua e linguagens, religião, modos e costumes, cultura, tudo se encontra nesse capítulo inicial do livro, com uma boa dose de humor, de ironia, sem que lhe falte o espírito libertário. Tudo necessário para a grande narrativa que vem a seguir. Acompanhará melhor o leitor a história de Gilliatt e Déruchette, em Os trabalhadores do mar, quem tiver passado pelas páginas de O arquipélago da Mancha, que podem parecer, a alguns, insossas, assim como há quem não saiba saborear, em Os sertões, a sua primeira parte A Terra. O intuito dos dois escritores, na nossa percepção, foi o mesmo: situar o leitor de modo que as informações contidas numa parte sejam recuperadas, nas demais, diante da importância da contextualização do ambiente e do homem.
Victor Hugo se mostra um homem de princípios. Não obstante o apoio à eleição de Luís Bonaparte a presidente da República, ele abre mão do convite feito pelo escritor Lamartine, um dos cabeças do movimento romântico francês, para ser ministro da instrução pública. Prefere continuar como deputado. Na Assembleia, ele tem voz e pode clamar, como clamou, pelos investimentos na educação e na cultura, falando veementemente contra os cortes de verba. No ministério, teria de baixar a cabeça ao chefe, além de saber que seria mais difícil obter as verbas de que o setor sempre necessita. Os princípios falaram mais alto, no momento do golpe de estado, levando Hugo a romper com Luís Bonaparte e a ridicularizá-lo no já citado panfleto Napoleão, o pequeno. Pagou caro por isto, com um exílio de 19 anos, mas manteve a cabeça erguida. Esta é a grande lição: a liberdade deve sempre ser defendida, mesmo que a violência contra ela tenha partido de alguém próximo, que conta com o nosso apoio ou a nossa simpatia. A liberdade não é mutável e seu conceito não se ajusta de acordo com a doutrina que alguém particularmente professa. Ou é liberdade ou não é. Daí as verrumas hugoanas contra Luís Bonaparte e contra o comunismo, cujos professadores são para ele, nada mais do que o produto da ignorância:
“É a favor da ignorância que certas doutrinas fatais passam do espírito impiedoso dos teóricos para o cérebro confuso das multidões. O comunismo não é senão uma forma de ignorância. No dia em que a ignorância desaparecer, os sofismas se esvairão”
Sobre a sua experiência, como deputado constituinte, diante do falatório inócuo e da falta de ação concreta, Hugo escreverá:
Du péril de l'ignorance, p. 27
“A Assembleia é quase inteiramente composta de homens que, não sabendo falar, não sabem escutar. Eles não sabem o que dizer e eles não sabem se calar. O que fazer? Eles fazem barulho. Sente-se que esta assembleia é de ontem e que ela não tem amanhã. Ela acaba de nascer e ela vai morrer. Daí um bizarro amálgama dos defeitos da infância e das misérias da decrepitude. Ela é pueril e senil. Nunca altura, nunca profundidade, mesmo na cólera. Não há tempestades, apenas saraivas.
Eu contemplo com frequência, meditando, a imensidão da sala e a pequenez da Assembleia”
Eu contemplo com frequência, meditando, a imensidão da sala e a pequenez da Assembleia”
Du péril de l'ignorance, p. 27
Difícil não perceber aí a atualidade de Victor Hugo, sobre a platitude e a falta de princípios dos políticos, mais preocupados com um tosco e degradante fisiologismo, que em lugar de envergonhá-los, só nos arruína. Sempre tendo combatido a favor da liberdade e da justiça, Hugo retoma, no exílio, esta necessidade premente de independência e de liberdade que o homem deve colocar em primeiro plano, ainda que haja perdas pessoais, na defesa do que é o certo, independente de quem o faça. Hugo, para quem o ler e, sobretudo, para quem o souber ler, deixa bem claro que a sociedade deve ir além do vício de condenar apenas quem faz, não o que se fez. Não importa quem faz, importa se o que é feito é o certo para o bem-comum.
Vemos nas páginas de O arquipélago da Mancha, a retomada dessa posição sobre o que é certo, que começa com a defesa intransigente da liberdade. No remate do Capítulo XVIII – Compatibilidade de extremos – Victor Hugo exalta a liberdade reinante nos arquipélagos (“De resto, todos os arquipélagos são países livres. Misterioso trabalho do mar e do vento.”), proveniente de um duplo profundo tremor de independência, por sua condição de ilhas anglo-normandas: os efeitos da revolução inglesa, no século XVII, e os da revolução francesa, no século XIX (p. 605, em tradução nossa).
A liberdade deve ser, antes de tudo, plena (“Chegue, viva, exista”), que dá o direito a cada um de ter ou não um Deus e poder professá-lo à sua maneira; a liberdade de ter ou não uma bandeira, não importa a cor, e poder fixá-la como uma árvore (Arborez-le), na rua; o direito de o cidadão poder denunciar o governo e de fazer associações públicas, tantas quantas ele desejar, sem nenhum limite (Nulle limite); mais ainda, a liberdade de reunir o povo em assembleia, sobretudo em praça pública, e atacar o poder e panfletar. O essencial na liberdade é que o povo saiba que a sua função é pensar, falar escrever, publicar, arengar (pensez, parlez, écrivez, imprimez, haranguez, c'est votre affaire – Atente-se para o detalhe do uso de arengar, como discurso público). Ao povo, o direito de tudo ouvir e de tudo ler, o que implica, por sua vez, tudo dizer e tudo escrever, cujo resultado é a “franqueza absoluta da expressão e da imprensa”, isto não concerne a ninguém e a ação da polícia deverá ser não de entraves a essa liberdade, mas de ajuda (D'entrave point, p. 603).
A liberdade, quando total, é “espetáculo grandioso”, que permite discutir “a coisa julgada” e, do mesmo modo que se pode passar um sermão num padre, pode-se julgar o juiz. Se a decisão judiciária é iníqua, “o erro judiciário possível não tem direito, coisa espantosa, a nenhum respeito”, sendo possível a contestação da justiça humana, como se contesta “a revelação celeste”. A liberdade concede-nos uma soberania, que não se sente mais, por tornar o direito respirável: “ele é incolor, imperceptível e necessário como o ar”. Quando assim, compreendemos a liberdade e o direito que a garante, vemos erigir-se uma casa modesta, mas “plena desta luz”, que é a liberdade (p. 604).
Não podia ser diferente, para um homem que plantou, na Place des Vosges, a Árvore da liberdade e deu vivas à república universal. Victor Hugo é atual, como podemos constatar, sempre fiel ao poder que emana do povo e de que tantos têm medo (L'Histoire; spécial – Victor Hugo, portrait d’un génie, nº 261, janvier 2002, p. 35, tradução nossa):
“Eu não compreendo que se tenha medo do povo soberano; o povo somos nós todos; é ter medo de si mesmo.”
Nos momentos decisivos, Hugo soube mostrar a sua grandeza como homem e como político. Não apenas se pôs contra a prepotência de Luís Bonaparte e contra o retorno do império que o fez Napoleão III; mostrou a sua dignidade, quando de volta do exílio, em 1870, clamou pela anistia dos que lutaram na Comuna de Paris de 1871, mesmo que na ocasião, ele tinha sido contra essa rebelião. O escritor sabia bem a diferença entre ter princípios e deles abrir mão pela conveniência, como se a verdade pudesse ter várias faces, dentre elas a face mascarada do arbítrio. Quem age ao sabor das próprias conveniências, é, como diz Hugo sobre Rantaine, um dos personagens de Os trabalhadores do mar, capaz de tudo, e de pior (Il était capable de tout, et de pire).