Uma plantinha cresce aos pés de Nossa Senhora da Conceição. Dela, sim, no seu nicho de 122 anos, a uns 30 metros do solo. É arte de um passarinho em retribuição às sementes que os Céus dispõem na terra seca aos bichos de pena, como ele. Suas asas o conduziram àquela altura para o depósito dessa oferenda com adubo e tudo.
Os pássaros, minha gente, costumam enfeitar nichos e monumentos sem a percepção de que as sementes não digeridas são, às vezes, de arvoredos com troncos capazes de rachar o bloco de cimento onde vinguem e cresçam, espantosamente, apenas à base de poeira e orvalho. Mas o pecado, nesse caso, será dos homens, esses bichos com juízo e, mesmo assim, relapsos.
Misteriosa aquela santa. Nunca falei com uma viva alma que tenha contemplado de perto suas feições. Saudoso do ambiente, estive, agora há pouco, aos pés da sua torre com o mesmo olhar ansioso por seus traços. Desde menino, angustio-me por não saber de seus olhos, seu nariz e sua boca.
Quem a fotografa do chão, como então fiz, quase nada vê além das mãos postas numa prece eterna pela saúde, pelo progresso e pelo bem estar dos que, lá embaixo, habitam a pequena Pilar, como um dia habitamos eu e os meus. De certo modo, é nossa a sujeira que amiúde lhe enfeia o abrigo. Permitimos este descuido, ano após ano. Somos a Igreja ausente e omissa até o ponto em que as nódoas, de tão acumuladas, choquem e incomodem. É quando as queixas batem nos ouvidos da Prefeitura, do padre, ou do bispo para as necessárias providências.
Esse monumento que a fé católica consagrou a Nossa Senhora da Conceição foi iniciado em fins de 1899 para receber o Século 20, ao que informava o saudoso Heitor Maroja, pilarense de quatro costados. Sempre assim: a santa principal no ponto mais elevado e outra imagem, esta de maior dimensão, mas sem o mesmo prestígio, em altar térreo de espaço mais amplo, com jeito de capela.
Meu coração de menino me faz preferir as histórias mágicas e encantadoras a respeito da Conceição com as quais cresci. Uma delas falava da descoberta da imagem naquele exato local, por um agricultor a caminho da roça. O homem atravessou o rio e a entregou ao vigário para entronização num dos altares da Matriz.
No dia seguinte, ela dali desaparecera. A polícia foi avisada do roubo, abriu investigação que não deu em nada e o assunto morreu. Até que, tempo depois, foi a santa outra vez encontrada naquele mesmo ponto: o cume do morro de onde se divisam as casas de Pilar. Houve nova entrega ao padre, nova entronização e novo desaparecimento. E isso se repetiu até a percepção generalizada de que a mãe de Cristo escolhera, para sua permanência, aquele definitivo lugar. Ergueram-lhe, então, o Monumento.
Outra história fala da sua queda de 30 metros, em dia de vento nunca visto, com a perda apenas de um dedinho. A fase adulta me traria o conhecimento de enredos similares com imagens de santos em cidades diversas, dentro e fora da Paraíba. Uma lástima, poderiam ser apenas lendas nossas.
Quando Portugal e Brasil celebravam os 500 anos do descobrimento, lamentei, em artigo de jornal, que a Paraíba – chamada, a exemplo dos demais estados, a participar do evento – não houvesse incluído o Monumento à Conceição no calendário festivo. Afinal, tratava-se de um marco histórico: a passagem de um século a outro.
Maroja chegou a buscar na Arquidiocese, em vão, documentos relacionados à propriedade do terreno e da torre ali edificada. Passei a também defender a reincorporação da área pública e a sugerir a sucessivos prefeitos sua revitalização com árvores, canteiros, alamedas, bancos, iluminação e um mirante de onde se pudesse contemplar o reflexo do sol poente no Rio Paraíba e nos telhados de um povo carente da oportunidade de emprego e renda.
Vocação para o turismo é coisa que não falta a sítios históricos como a paraibaníssima Pilar feita vila por carta régia de Dona Maria I, em 14 de setembro de 1758. Mas, em 1630, ao aprofundarem a invasão, os holandeses ali já encontravam fazendas de gado. Quarenta anos depois, os jesuítas capitaneados por um Frei Francisco Antonio Maria provindo da italiana Modena, ali fundava o colégio em torno do qual o povoado se formaria. Trouxe consigo outra imagem festejada pelos locais: uma Nossa Senhora del Pilar, a padroeira hoje com mais de três séculos e meio. A “Casa dos Jesuítas”, longe da originalidade porquanto sucessivamente modificada, situa-se a poucos passos da Igreja atual e inscreve-se entre os mais sentidos orgulhos dos pilarenses.
Outro é o Engenho Corredor, berço de José Lins do Rego revitalizado e aberto à visitação. Também, a Casa da Tia Naninha onde o romancista viveu parte da infância. E, ainda, a Casa de Câmara e Cadeia, local onde Dom Pedro II concedeu um dos seus beija-mãos à sociedade paraibana, um dia depois do Natal de 1859, lá se vão 163 anos.
Lugares com esse tempo de existência também costumam parir certas expressões da política e da história. Que o digam os pilarenses Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque (presidente da Província de Sergipe, por carta imperial de dezembro de 1824) e Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Cavalcanti. Este último foi ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, ministro da Justiça e dos Estrangeiros, além de presidente das Províncias do Piauí, Ceará e Pernambuco, na segunda metade do Século 19. Conta-se que Diogo Velho determinou a construção, na Paraíba, da Estrada de Ferro Conde d'Eu que ligaria Cabedelo a Alagoa Grande. E Pilar ainda inclui na relação de filhos famosos Albino Gonçalves Meira (presidente de Pernambuco, em 1890) e Manoel Maroja Neto (desembargador e governador do Pará, de novembro de 1945 a fevereiro de 1946).
“Lugar que já teve forca não progride”. Quantas vezes os meninos da minha geração não ouvimos isso dos mais velhos quando de uma ou outra queixa, ora contra a falta de mercadorias no comércio local, ora em razão dos avanços da vizinha Itabaiana.
De fato, os nomes de peso da política regional, ou nacional, nascidos nessa beira do Paraíba pouco ou nada ajudaram no desenvolvimento da terra que deles ouviu o primeiro choro. Nem estes nem, infelizmente, os que depois deles adviriam. Mas não percamos a esperança. Ainda há, em nosso favor, uma santa de mãos postas.