No hotel, vou até o balcão e peço um copo de cachaça. Cheio. Preciso de coragem para enfrentar a temível frieza do chuveiro que me espera. Na confusa arquitetura desse hotel não se repara, mas resultou de uma antiga casa que sofreu reforma para adaptar-se a um armazém de sisal, e cujo negócio fora alguns anos depois abandonado, restando dele o grande salão, ora aproveitado para recepção, estar de hóspedes e servi- ços de bar e restaurante. A noite se aproxima. Lá fora, o vento zurra, como sempre faz nessa região de serras sem fim.
O banheiro fica na parte de trás da casa, em um quintal emperrado de plantas. Avencas, bromélias, ervas medicinais cultivadas em grandes potes de cerâmica. Àquela hora, no entanto, não passa de uma enxerga escura, por onde – através do piso tosco feito de umas melecadas de cimento sobre chão batido –, é dada aos hóspedes a tateante possibilidade de ganhar seus aposentos.
Esse banheiro é do tipo coletivo, situado no final da fileira dos quartos, e consiste num cano com uma torneira na extremidade, descendo vertical de um tanque sobre o teto. Tanque que alguém abastece de tempos em tempos, subindo por uma escada, pois também não existe na localidade um sistema de abastecimento por canos.
Àquela hora, não há ninguém por ali, e após o banho, saio entre rápidos, insistentes espasmos de frio, e, ainda envolto numa toalha, transponho com cuidado a canaleta aberta que escoa a água do chuveiro, e esta que, por sua vez, escorrera diretamente do piso cimentado, passara sob uma esquálida porta de tábuas rejuntadas e ganhara a canaleta, ao ar livre, e agora se prolonga até uma abertura por baixo do piso do portão dos fundos, por onde a substância toma rumo ignorado. Percebo ainda, nessa passada e no lusco-fusco da hora, um grande chumaço de escuma de sabão, encurralado numa curva.
Entro no quarto, me troco e daí a pouco, estou novamente no salão esperando ser servido. A noite caiu por completo e a mulher idosa, vestida como uma boneca de feira nordestina, usa um vestido que lhe chega até os tornozelos, e tem certa dificuldade em servir os pratos à luz da lanterna coleman, colocada sobre o balcão ao fundo e ampliando sombras que se esborracham, trêmulas, pelas paredes, e vão se fragmentar, de acordo com esses movimentos, nos ângulos da porta, por onde parte da luz escapa para a rua e, ocasionalmente voltando ali a ser cortada por novos e movediços retalhos de sombras.
Uma exceção é a própria sombra da mulher. Ao servir os pratos, ela se movimenta sempre por um vão entre a mesa e a parede: a sombra dela, sempre inteira, se move e negaceia fixidez balançando-se constantemente ao sabor do lume, e dá uma impressão de brotar do emaranhado de caibros e telhas, onde sua cabeça projetada se pulverizou, e depois, projetando-se ao contrário, descer como um visgo pela parede, atingir o chão e rastejar rapidamente até seus pés.
Quando acaba de pôr a mesa, encerra também aqueles comentários momentosos e altissonantes que sempre faz, numa voz que, apesar disso, soa melíflua e algo forçada. Comentários sempre prontamente reafirmados por quem, fora do seu ambiente de trabalho, e apenas por tal, se há convertido em excelente fingidor de boa disposição e concordância absoluta para com todo e qualquer preceito emanado do senso comum, desse valiosíssimo por que banal glossário das generalidades humanas, e da prática mais do que recomendada entre cristãos que se prezam. Mesmo quando conversas do tipo não passem de um estorvo. Feito agora.
Mas a mulher voltou para a cozinha e me deixou só. Entre uma garfada e outra, parando para mastigar o porco trinchado com certa dificuldade, acompanhado de abóbora e arroz cozido no leite, tento por as ideias em ordem e não me deter em minha própria, enorme e opressiva sombra, inclinada e balançando-se suavemente na parede, como se ela, inteira, mastigasse também.
Apesar de revigorado pelo banho frio de doer, outra sombra me vem à mente: a de uma multidão de jantares em começos de noites assim, sempre parecidos e vividos nos últimos vinte anos. Jantares solitários que acabaram me deixando íntimo desse som algo apressado de talheres baratos, desses passos arrastados, prudentes, de quem serve, e embora não tivesse sido sempre as- sim, naquele momento era como se houvesse sido, sim, sempre, ou devesse ter sido, puxa, a essa altura, não tinha tanta certeza de todas essas coisas, embora aquele barulho de talheres voltasse a me falar da existência desses candeeiros e lampiões com suas noites contadas – noites a me lembrar pacientes de frios e desolados hospitais, aguardando, sem saber, a morte certa que lhes vai chegar ao final dos trabalhos da Companhia, dos serviços da minha turma de trabalho –, dessa comida simples, servida sem meias-medidas, à qual me afeiçoara, é verdade. Uma das poucas coisas que talvez um dia me façam sentir saudades desses rincões perdidos onde meus dias se gastam.
Os trabalhos estavam no fim. A cidade, em breve iria receber o fogo da iluminação elétrica. E eu me sabia, uma vez mais, estar me despedindo de outro monte de sombras que não mais tornaria a ver.
Excerto de: A Substância Brown (contos)