Aos que me leem, minhas desculpas. Duplas desculpas. Em primeiro lugar, por repetir o tema, voltando ao grande escritor Victor Hugo. Em segundo lugar, por este texto não ser uma página crítica ou analítica, apenas uma tradução operacional de um trecho de um capítulo de Os trabalhadores do mar, em que, aos meus olhos de leitor, reside um dos melhores perfis psicológicos do hipócrita e uma das melhores conceituações de hipocrisia. Victor Hugo, mestre incomparável, ao mergulhar no íntimo do ser humano, desvela ambos diante de nossos olhos.
O trecho que ora traduzimos diz respeito ao personagem Clubin, visto como homem probo, mas que, constrói, lentamente, a oportunidade de mostrar a sua verdadeira face, desvelando-se completamente, em um capítulo que se intitula “Um interior de abismo, revelado” (Os Trabalhadores do mar, Primeira Parte, Livro VI, Capítulo VI, p. 782-788). É capítulo de reviravolta. Quando todos pensamos que o grande vilão do romance é Rantaine, de que já falamos no ensaio anterior, ladrão do dinheiro de Mess Lethierry, vemos, com surpresa, que Clubin, que se encontra com Rantaine e retoma o dinheiro roubado, é o verdadeiro vilão, capaz de planejar o naufrágio da Durande, o navio a vapor de Mess Lethierry, que ele comanda, e sua morte gloriosa, aparentemente salvando a todos e ficando no navio, por falta de espaço no escaler, para afundar com ele. Na realidade, Clubin forja a sua própria morte e a glória com que será visto por todos de Guernesey, planejando fugir com o dinheiro roubado para a América, onde teria nova vida:
“O naufrágio era necessário. Além disso, ir-se deixando uma boa reputação, o que fazia de toda a sua existência uma obra-prima. Quem tivesse visto Clubin nesse naufrágio acreditaria ter visto um demônio, feliz.
Ele vivera toda a sua vida por aquele minuto.”
Ele vivera toda a sua vida por aquele minuto.”
⏤ p. 782 ⏤
Passemos a palavra a Hugo.
“O canalha reprimido que estava em Clubin explodira.
[...]
Clubin olhou a obscuridade imensa, e não pôde reter uma gargalhada baixa e sinistra.
Ele estava, então, livre! Estava, então, rico!
Seu desconhecido se destacara, enfim. Ele resolvera seu problema. [...]
De pé sobre a Durande naufragada, ele cruzou os braços, saboreando o abandono nas trevas.
A hipocrisia pesara trinta anos sobre este homem. Ele era o mal e havia copulado com a probidade. Ele odiava a virtude com um ódio de mal casado. Ele tivera sempre uma premeditação celerada; desde a idade de homem, ele portava aquela armadura rígida, a aparência. Ele era monstro por baixo; ele vivia em uma pele de homem de bem com um coração de bandido. Ele era o pirata dócil. Ele era o prisioneiro da honestidade; estava fechado naquele caixa de múmia, a inocência; ele tinha sobre as costas asas de anjo, esmagadoras para um pulha. Ele estava sobrecarregado da estima pública. Passar por homem honesto é duro. Manter sempre isto em equilíbrio, pensar mal e falar bem, que trabalheira! Ele era o fantasma da retidão, sendo o espectro do crime. Este contrassenso havia sido seu destino [...]. A virtude para ele, era coisa que sufoca. Ele havia passado sua vida a ter vontade de morder aquela mão sobre a boca.
E, querendo mordê-la, tivera de beijá-la.
Ter mentido é ter sofrido. Um hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; ele calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de um golpe mau acompanhada e dosada de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente fama, enganar continuamente, não ser jamais ele mesmo, iludir é uma fadiga. Compor a candura com todo aquele negro que se tritura em seu cérebro, querer devorar os que o veneram, ser carinhoso, reter-se, reprimir-se, estar sempre na defensiva, vigiar-se sem cessar, fazer boa cara para o seu crime latente, transformar a disformidade em beleza, fabricar-se uma perfeição com a sua perversidade, fazer cócegas com punhal, açucarar o veneno, vigiar a sinceridade do gesto e a música da voz, não ter um olhar seu, nada é mais difícil, nada é mais doloroso. O odioso na hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Beber perpetuamente a sua impostura é uma náusea. A doçura que a astúcia dá à perversidade repugna ao celerado, forçado continuamente a ter essa mistura na boca, e há instantes de náusea em que o hipócrita fica a ponto de vomitar o seu pensamento. Engolir essa saliva é horrível. Junte-se a isto o profundo orgulho. Existem instantes bizarros em que o hipócrita se estima. Há um eu desmesurado no impostor. O verme tem o mesmo deslizar do dragão e o mesmo levantar-se. O traidor não é outra coisa senão um déspota reprimido, que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se a um papel secundário. É a pusilanimidade capaz da enormidade. O hipócrita é um titã-anão.
[...]
O verdadeiro Clubin despojava-se do falso. Com um golpe, ele havia tudo dissolvido. Com o pé, ele havia empurrado Rantaine para o espaço, Lethierry para a ruína, a justiça humana para a noite, a opinião para o erro, a humanidade inteira para fora dele, Clubin. Ele acabava de eliminar o mundo. Quanto a Deus, esta palavra de quatro letras pouco o ocupava.
Ele havia passado por religioso. E daí?
Há cavernas no hipócrita, ou melhor dizendo, o hipócrita inteiro é uma caverna.
[...]
Arrancar a máscara, que libertação! Sua consciência goza de ser ver hediondamente nua e tomar livremente um banho ignóbil no mal. O constrangimento por um longo respeito humano acaba por inspirar um gosto violento pelo impudor. Chega-se a uma certa lascívia na perversidade. Existe, nessas terríveis profundezas morais tão pouco sondadas, não sabemos que exposição atroz e agradável que é a obscenidade do crime.
[...]
A erupção de um hipócrita não se compara a nenhuma abertura de cratera. [...]
Para aqueles cujo ideal é o mal, o opróbio é uma auréola.
[...]
Ser desmascarado é uma derrota, mas desmascarar-se é uma vitória. É a ebriedade, é a imprudência insolente e satisfeita, é a nudez louca que insulta tudo diante dela. Suprema felicidade.
[...]
O hipócrita, sendo o perverso completo, tem nele os dois polos da perversidade. Ele é de um lado padre, e do outro, cortesão. Seu sexo de demônio é duplo; O hipócrita é o terrível hermafrodita do mal. Ele se fecunda sozinho. Ele se engendra e se transforma por si mesmo. Se o quiseres encantador, olha-o; se o quiseres horrível, vira-o.
Clubin tinha em si toda esta sombra de ideias confusas. Ele as percebia pouco, mas muito as gozava.
Algumas faíscas do inferno que se veriam na noite, eram a sucessão dos pensamentos daquela alma.
Clubin ficou assim algum tempo sonhador; ele observava a sua honestidade com o ar com que a serpente observa sua velha pele.
Todo o mundo havia acreditado nessa honestidade, ele mesmo um pouco. Ele deu uma segunda gargalhada.
Acreditariam que ele morrera, ele estava rico. Acreditariam que ele se perdera, ele estava salvo. Que bela jogada contra a besteira universal!”
[...]
Clubin olhou a obscuridade imensa, e não pôde reter uma gargalhada baixa e sinistra.
Ele estava, então, livre! Estava, então, rico!
Seu desconhecido se destacara, enfim. Ele resolvera seu problema. [...]
De pé sobre a Durande naufragada, ele cruzou os braços, saboreando o abandono nas trevas.
A hipocrisia pesara trinta anos sobre este homem. Ele era o mal e havia copulado com a probidade. Ele odiava a virtude com um ódio de mal casado. Ele tivera sempre uma premeditação celerada; desde a idade de homem, ele portava aquela armadura rígida, a aparência. Ele era monstro por baixo; ele vivia em uma pele de homem de bem com um coração de bandido. Ele era o pirata dócil. Ele era o prisioneiro da honestidade; estava fechado naquele caixa de múmia, a inocência; ele tinha sobre as costas asas de anjo, esmagadoras para um pulha. Ele estava sobrecarregado da estima pública. Passar por homem honesto é duro. Manter sempre isto em equilíbrio, pensar mal e falar bem, que trabalheira! Ele era o fantasma da retidão, sendo o espectro do crime. Este contrassenso havia sido seu destino [...]. A virtude para ele, era coisa que sufoca. Ele havia passado sua vida a ter vontade de morder aquela mão sobre a boca.
E, querendo mordê-la, tivera de beijá-la.
Ter mentido é ter sofrido. Um hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; ele calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de um golpe mau acompanhada e dosada de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente fama, enganar continuamente, não ser jamais ele mesmo, iludir é uma fadiga. Compor a candura com todo aquele negro que se tritura em seu cérebro, querer devorar os que o veneram, ser carinhoso, reter-se, reprimir-se, estar sempre na defensiva, vigiar-se sem cessar, fazer boa cara para o seu crime latente, transformar a disformidade em beleza, fabricar-se uma perfeição com a sua perversidade, fazer cócegas com punhal, açucarar o veneno, vigiar a sinceridade do gesto e a música da voz, não ter um olhar seu, nada é mais difícil, nada é mais doloroso. O odioso na hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Beber perpetuamente a sua impostura é uma náusea. A doçura que a astúcia dá à perversidade repugna ao celerado, forçado continuamente a ter essa mistura na boca, e há instantes de náusea em que o hipócrita fica a ponto de vomitar o seu pensamento. Engolir essa saliva é horrível. Junte-se a isto o profundo orgulho. Existem instantes bizarros em que o hipócrita se estima. Há um eu desmesurado no impostor. O verme tem o mesmo deslizar do dragão e o mesmo levantar-se. O traidor não é outra coisa senão um déspota reprimido, que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se a um papel secundário. É a pusilanimidade capaz da enormidade. O hipócrita é um titã-anão.
[...]
O verdadeiro Clubin despojava-se do falso. Com um golpe, ele havia tudo dissolvido. Com o pé, ele havia empurrado Rantaine para o espaço, Lethierry para a ruína, a justiça humana para a noite, a opinião para o erro, a humanidade inteira para fora dele, Clubin. Ele acabava de eliminar o mundo. Quanto a Deus, esta palavra de quatro letras pouco o ocupava.
Ele havia passado por religioso. E daí?
Há cavernas no hipócrita, ou melhor dizendo, o hipócrita inteiro é uma caverna.
[...]
Arrancar a máscara, que libertação! Sua consciência goza de ser ver hediondamente nua e tomar livremente um banho ignóbil no mal. O constrangimento por um longo respeito humano acaba por inspirar um gosto violento pelo impudor. Chega-se a uma certa lascívia na perversidade. Existe, nessas terríveis profundezas morais tão pouco sondadas, não sabemos que exposição atroz e agradável que é a obscenidade do crime.
[...]
A erupção de um hipócrita não se compara a nenhuma abertura de cratera. [...]
Para aqueles cujo ideal é o mal, o opróbio é uma auréola.
[...]
Ser desmascarado é uma derrota, mas desmascarar-se é uma vitória. É a ebriedade, é a imprudência insolente e satisfeita, é a nudez louca que insulta tudo diante dela. Suprema felicidade.
[...]
O hipócrita, sendo o perverso completo, tem nele os dois polos da perversidade. Ele é de um lado padre, e do outro, cortesão. Seu sexo de demônio é duplo; O hipócrita é o terrível hermafrodita do mal. Ele se fecunda sozinho. Ele se engendra e se transforma por si mesmo. Se o quiseres encantador, olha-o; se o quiseres horrível, vira-o.
Clubin tinha em si toda esta sombra de ideias confusas. Ele as percebia pouco, mas muito as gozava.
Algumas faíscas do inferno que se veriam na noite, eram a sucessão dos pensamentos daquela alma.
Clubin ficou assim algum tempo sonhador; ele observava a sua honestidade com o ar com que a serpente observa sua velha pele.
Todo o mundo havia acreditado nessa honestidade, ele mesmo um pouco. Ele deu uma segunda gargalhada.
Acreditariam que ele morrera, ele estava rico. Acreditariam que ele se perdera, ele estava salvo. Que bela jogada contra a besteira universal!”
⏤ p. 782—788 ⏤
Bela jogada, realmente. Roubou o dinheiro do patrão, fez seu navio naufragar, forjou a sua morte e ainda saiu com a glória do salvador, que sacrificou a própria vida para salvar a vida dos náufragos. Os Clubins são muitos, se multiplicam e saem da ficção para assombrar a realidade. Com diz Hugo, “homens há próprios para tudo, mas bons para nada”.