As viradas dos anos trazem-me sempre à memória aquelas antigas figuras do velhinho e do menino, o primeiro a se despedir do tempo e o s...

O Velho e o Menino

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As viradas dos anos trazem-me sempre à memória aquelas antigas figuras do velhinho e do menino, o primeiro a se despedir do tempo e o segundo a nele ingressar. Mas não são quadros difusos o que me vem à lembrança nessas ocasiões. É, ao invés disso, uma gravura específica que suponho ter visto, pela primeira vez, na Farmácia que Seu Israel instalou na cidadezinha de onde quase vim ao mundo. Quase, porquanto ali chegado aos seis meses de vida.

Apenas suponho, dada a possibilidade de ter conhecido aquele quadro em outro ambiente. É provável que, sem consciência disso, haja eu associado a imagem em carne e osso
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do velho farmacêutico à do Matusalém de papel e tinta.

Dono da calvície mais completa que alguém possa merecer, o primeiro deles ainda exibia o peso e os males da idade numa corcunda impressionante. Tinha na coluna as dobras de um anzol. Espantosamente, porém, tais defeitos sublinhavam suas virtudes. Afável, cortês, obsequioso, fizera-se admirado e benquisto pela cidade inteira.

Eu nunca soube de uma viva alma que dele não gostasse. O saudoso professor José Augusto de Brito, um dos seus admiradores, contava que, de tão bom, Seu Israel, ao pressentir a morte, tratou de esconder a caderneta de fiados para que os herdeiros não fossem cobrar aquilo que os amigos mais pobres não poderiam pagar. A farmácia durou o tempo exato da existência do dono. Morreram ambos quase com o mesmo suspiro.

Está explicada a razão pela qual eu passei a unificar os dois velhinhos: o boticário e o da gravura. Isso também esclarece por que, até hoje, me compadeço da figura provecta tomada como símbolo da morte do Ano Velho. A pintura tinha a resignação, o corpo alquebrado e o olhar triste de Seu Israel. Daí, eu acreditar que estivesse pregada à parede da pequena farmácia. Não, em outro lugar qualquer. Estaria, isto sim, ali, no seu templo, com o espírito e a aparência do dono da casa.

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Como eu gostava daquele ambiente. Quem estivesse à porta não dava mais que dois passos para encostar a barriga no balcão. As prateleiras dispunham-se em “U”, ou seja, na parede do fundo e nas duas laterais. Não mais que cinco delas, umas sobre as outras espaçadas o suficiente para o abrigo de frascos grandes.

Saiu dali o meu primeiro cálice do Biotônico Fontoura. E dali, ainda, a minha primeira ressaca depois que nos meus dez, ou onze anos, emborquei meio vidro, goela a baixo, escondido da minha mãe. Acho que tiraram o álcool do biotônico (9,5% da composição antiga) em 2001 por ordem da sisuda Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Antes disso, aquele remédio tinha um gostinho irresistível de pecado. Mas dali me vieram, também, desgraçadamente,
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as primeiras colheradas do infame óleo de fígado de bacalhau acondicionado naquele vidro com a tradicional imagem do pescador e do peixe enorme em suas costas.

A maestria de Seu Israel no manuseio de ampolas e no preparo de porções milagrosas contra todos os males, como assim críamos, com uso de uma balancinha de pêndulo, pratos e pesos inacreditáveis, de tão pequenos, me fizeram pensar, por algum tempo, em ser farmacêutico. A esterilização de agulhas e seringas em água fervente, na tampa do estojo de metal transformado a passos de mágica em fogão a álcool, era para mim algo hipnótico.

O balcão tinha parte que se podia erguer sobre a portinhola destinada à passagem até aquela salinha reservada à infeliz clientela das injeções no bumbum. Um “ai” em tom maior, inevitável até por gente grande, denunciava a “Benzetacil”, castigo, algumas vezes, no caso de machos, pela frequência a certos e sabidos ambientes. A coisa curava infecções bacterianas, da amigdalite à sífilis.

É disso que lembro quando ouço, hoje em dia, o delicioso samba homônimo cantado por João Bosco. Aquele com estes versos:

"Mas, na verdade, tenho que dizer, tem uma dor tão vil que dói só de pensar. Você não sabe, amigo, o que é levar uma Benzetacil naquele lugar. Esparadrapo, Calminex, gelo, boldo, sal de frutas, cafuné de mãe... Não tem nenhum remédio para essa dor maldita. Vira, abaixa as calças, entrega a Deus e amém."

Mas retornemos aos calendários com a gravura dos dois personagens daqueles fins de dezembro: o Velho e o Menino. Voltemos aos giros do tempo, às rodas do mundo que ora nos embalam, ora nos sacodem ao sabor das circunstâncias, sempre e sempre.

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Jamais alguém me verá maldizer um ano que se encerra. Este que agora termina me trouxe coisas boas e outras nem tão boas assim. E deve ter acontecido o mesmo a toda gente. Afinal, nada é totalmente perfeito, ou imperfeito.

Por essa mesma razão, nunca me dispus a ver o Ano Novo como prenúncio da felicidade plena e absoluta. Mas, como você, também sou feito de fé e esperança. Torço para que atravessemos 2023 sem maiores problemas com a subsistência, com a saúde, com a família e com as amizades. Peço que este novo tempo nos traga a decência, a candura e a bondade de Seu Israel. Digam os anjos Amém.

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  1. Flávio Ramalho de Brito30/12/22 05:32

    Que o Ano Novo nos traga a decência, a candura e a bondade de Seu Israel.

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    Respostas
    1. frutuosochaves@gmail.com30/12/22 06:41

      Que assim seja.

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  2. frutuosochaves@gmail.com31/12/22 10:29

    Grato, amigo

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