Quando recebi o convite para o lançamento do mais recente livro de Rubens Nóbrega, de título Baixa do Mel (Editora Ideia, João Pessoa, 2022), imaginei, no primeiro momento, que devia ser algum texto memorialístico do bananeirense que nunca deixou o chão natal, apesar de viver em João Pessoa há muitos anos. Nunca tinha ouvido falar na tal Baixa, mas supus que devia ser algum lugar relacionado a Bananeiras, atual ou antigo, que o jornalista/escritor estivesse resgatando através da memória e da palavra escrita. Só depois, quando fui ler com mais atenção o convite, é que me dei conta de que se tratava de um romance. Veja só, um romance, pensei, para completar imediatamente: Cabra corajoso, esse Rubens.
Sim, senhor, muito corajoso esse Rubens Nóbrega que, em jornal e em blog, sempre trabalhou com fatos, notadamente os políticos, e agora decide partir para a ficção romanesca, desafio máximo dos escribas em geral, aqui e em todo lugar. Até mesmo os jornalistas profissionais, afeitos, por dever de ofício, ao constante uso da palavra escrita, quando se aventuram pelo mundo literário, costumam começar pela crônica, espécie de fronteira entre o jornalismo e a literatura, e depois os persistentes e vocacionados vão até o conto, menos por sua ilusória facilidade e mais por sua limitada extensão, certamente. Apenas alguns poucos, raríssimos, arriscam-se ao grande e definitivo teste que é o romance. Como se vê, Rubens arriscou-se. Daí sua coragem.
Como toda literatura e toda arte, o romance de Rubens tem suas pitadas autobiográficas. Quem conhece um pouco de sua história pessoal pode talvez identificar, aqui e ali, acontecimentos e personagens que lembram itens de sua biografia. Isto não é nenhum defeito, afirmo logo. Pelo contrário. É mais uma técnica do escritor, uma opção do ficcionista, enfim, um recurso literário costumeiramente utilizado por vários autores, inclusive alguns de grande renome. Particularmente, aprecio muito essas inserções da realidade na ficção, pois, quando usadas com competência, como é o caso, agregam verossimilhança à narrativa. Os romancistas históricos costumam trabalhar assim e, normalmente, os resultados são ótimos. História, memória e imaginação podem perfeitamente caminhar juntas. E, se não me equivoco, isso acontece, com bastante êxito, em Baixa do Mel.
A trama se passa na localidade que dá título ao livro, um povoado nas proximidades de Bananeiras, típico torrão interiorano do Nordeste brasileiro contemporâneo, com suas situações e atores igualmente típicos. O que pode parecer aos mais apressados uma caricatura daquele meio e daquela gente é simplesmente a realidade tal e qual. Quem quiser conferir que passe uma temporada em qualquer lugar semelhante. Certamente não faltarão, qualquer que seja a paisagem, o chefe político, o padre, o tabelião, o delegado, os donos da mercearia e da farmácia, as maledicências, as fofocas, as violências e arbitrariedades, as disputas de todo tipo, as ambições, os amores, os preconceitos, enfim, tudo aquilo que torna universais todas as aldeias do mundo, como bem falou Tolstói, com outras palavras, naturalmente. E tudo começa na manhã de sol do dia cinco de janeiro de 2004, portanto, há apenas dezoito anos. Trata-se, pois, de uma narrativa que se passa em tempos quase atuais, fato que muito ajuda o leitor a situar-se perante o texto.
Nessa manhã fatídica, Rosário, uma mocinha, leva o casal de sobrinhos pequenos para tomar banho no açude de Baixa do Mel. Distrai-se com seus pensamentos românticos e o menino Duinho, metido dentro de uma cabaça grande, adentra as águas potencialmente perigosas, na direção do meio do açude. Ao perceber o perigo que a criança corre, entra na água para salvá-la. Simultaneamente, Betão, um rapaz negro, ao também ver o menino prestes a se afogar, nada em direção à cabaça, para ajudar. Mas Rosário, cheia de preconceitos, o impede de sequer aproximar-se de Duinho, impedimento este que, infelizmente, resulta no afogamento da criança, com todas as consequências previsíveis. Isto é só o início da trama. E mais não conto para não estragar a leitura do romance.
Em sua apresentação, o professor Chico Viana classificou o livro como “um misto de ficção, jornalismo e registro sociológico”. É o olhar abalizado do crítico. O livro certamente contém toda essa mistura observada pelo mestre. Mas confesso que, como simples leitor, prefiro vê-lo – e lê-lo - apenas como um romance, dele não exigindo mais do que normalmente espero de toda obra ficcional: correção da escrita, personalidade do estilo e razoabilidade do enredo, sem falar, é claro, na capacidade do texto de prender minha atenção e meu interesse. O livro de Rubens, para mim, atende a tais requisitos e por isso dou-me por satisfeito.
Todavia, advirto que a narrativa é forte e mexe muito com as emoções do leitor. Há tragédia, dor, preconceito, discriminação, intolerância, injustiça, clientelismo, corrupção, fanatismo e outras mazelas humanas e sociais que impactam bastante quem lê e que lembram, em várias passagens, um certo país que conhecemos, tão marcado por problemas semelhantes desde sempre. Acredito que sejam os aspectos jornalísticos e sociológicos de que fala Chico Viana. Nessa linha, uma possibilidade de exegese da obra é a de que a Baixa do Mel romanceada, para além dos eventuais aspectos memorialísticos/biográficos, seja um pretexto para o autor retratar, em um microcosmo reconhecível, vícios nacionais antigos e contemporâneos. O feio espetáculo daquele pequeno mundo retratado é de tal ordem que se o título do livro fosse Baixa do Fel não seria de estranhar. E aqui abro um parêntese para acrescentar que não faltou ao texto até mesmo uma certa pitada de erotismo, para completar a verossimilhança do mural aldeão concebido pelo romancista.
Por sua vez, no prefácio, o também professor Múcio Souto faz o seguinte registro: “Esta sua produção revela a paixão do autor por sua terra, profundo apreço pelos nela viventes e a esperança, ao transitar por seus problemas cotidianos, de contribuir na direção da coragem ao enfrentamento de adversidades e desafios para, desse modo, se não os superar, ao menos minorá-los”. Corretíssimo.
Em recente entrevista ao jornal A União, Rubens, com sua verve habitual, tranquilizou os possíveis concorrentes locais, advertindo-os de que não pretende se tornar um romancista contumaz. De minha parte, espero que tenha sido apenas uma “boutade” do autor e não uma promessa definitiva de abstenção.