Uma insônia inquietante me atormentava naquela noite. Eu não conseguia dormir. O galo já cantara uma vez e, como um noctívago, saí a caminhar pelas ruas vazias da pequena cidade, sem rumo, procurando espantar o que me afligia.
No alto, uma meia lua chorosa se escondia entre nuvens semicarregadas que pareciam estáticas, deixando tudo em tênue penumbra.
Vaguei sem medo pelo Centro e o Varadouro. Aqui e acolá, caíam finos chuviscos, mas não me importei. Tivera o cuidado de levar comigo meu chapéu baeta e uma bengala de pega arredondada, trazida por meu pai da cidade de Beaurepaire, norte do departamento da Vendée, na região Pays de la Loire, sudeste da França, de onde eram meus ancestrais paternos.
Fui em frente, e passando pela Igreja do Rosário, segui pela Rua do Carmo, cruzei o Largo do Erário, onde se situaram a Casa de Contos, Casa de Câmara e cadeia, e pelos largos do Carmo, São Bento, São Francisco e São Frei Pedro Gonçalves. Todos estavam com suas portas cerradas. A essa hora da noite, sinos não dobram por ninguém e almas só são vistas por quem delas tem medo.
Meu propósito era apenas caminhar, movimentar o corpo até me cansar e voltar para dormir. Por isso segui em frente, sem destino certo. Por onde passei tudo estava às escuras. Nenhuma luz acesa no interior das residências. Sequer uma réstia de luz escapava por entre frestas dando sinal de vida. Intrigado, me interroguei se este costume ocorreria por possíveis incômodos aos de casa, simples economia de óleo e querosene, ou algo cultural?
⏤ “Luz acesa de noite atrai mosquitos”. Foi o que me falaram, de forma simplista, em outro momento, justificando porque nenhum candeeiro ficava aceso em algum ponto do interior da casa, quando se dormia.
Nas ruas da cidade, uns poucos lampiões a óleo de baleia, um aqui outro acolá, ficavam acesos por toda a noite. Serviam para iluminar, minimamente, locais mais críticos. Tranquila, a cidade simplesmente dormia àquelas horas!
Desci a ladeira do São Francisco, à direita da Igreja, em busca do cais. Ao chegar embaixo, em terreno plano na base da encosta, logo depois da Casa da Pólvora, vi um cercado repleto de bestas a relinchar, provavelmente de fome, e que eram usadas no transporte de mercadorias para os depósitos comerciais próximos e no serviço de entrega de água potável, de porta em porta. Todas vieram para a cerca que nos separava, certamente, supondo que eu fosse o tratador a lhes trazer provisões.
Focos de luz saídos do alto da “torre dos Jesuítas” ou torre da Igreja de São Gonçalo, construção iniciada em 1595 e cujo prédio foi diversas vezes reformado para outras destinações, se derramavam sobre os baixos da cidade, alcançando o Sanhauá, cujas águas como se fossem espelhos a iluminar, os refletiam deixando o cais e o Varadouro mais claros, e mais seguros os barqueiros que de longe os tomavam como farol a guiar sua chegada à cidade.
Pescadores e ajudantes, com farnéis e pequenos barris de madeira recheados, começavam a chegar ao cais para mais um dia de pesca, que tanto poderia ser de rio, como de mar. Os homens da pesca estavam sempre prontos para uma coisa ou outra. Iam onde o peixe estivesse e a maior ou menor abundância deles no trajeto é que decidiriam onde baixar velas e deitar âncoras.
Barcos chegavam e saiam a qualquer hora, por isso não faltava gente, de dia ou de noite, no ancoradouro. À beira do cais, encontrei o comandante Antônio Bento que conhecera, casualmente, no dia em que, vindo do Rio de Janeiro, depois de breve passagem por Recife, desembarquei na cidade da Parahyba.
Este, logo me perguntou: ⏤ Coronel, o que o traz aqui em hora tão ingrata? Não era para estar dormindo? Em que posso servi-lo?
Limitei-me a dizer: em nada, comandante! Muito obrigado, disse escondendo discretamente o motivo pelo qual estava ali àquela hora.
Mas, se o senhor quer mesmo saber, comandante, estou aqui procurando o sono, nesta noite quente de verão. E continuamos a conversar por mais alguns minutos.
Com um grupo de seis a sete arrumadores, Antônio Bento comandava o carregamento do barco que, às seis da manhã, conduziria ao Recife, onde procederia entrega de valiosa carga de bois-brésil e outras madeiras de lei.
Enquanto conversávamos, o comandante Antônio Bento e eu, outra pessoa vinha chegando e se aproximou de maneira intrometida e pouco educada. Era o comandante de outro barco, no entanto, não estava com o uniforme habitual.
Houve os comprimentos de praxe, mas o tal comandante, não satisfeito, pareceu querer saber mais a meu respeito. Olhou-me de cima abaixo e notei que reticente, estranhava alguma coisa. Meus trajes, meus calçados, talvez! E com ar de desdém, e sem meias palavras, curvando a cabeça por sobre o ombro esquerdo, perguntou:
⏤ O Senhor é mesmo quem? Se mal pergunto, o que procura aqui a esta hora? Por que não está dormindo? Por acaso, é algum fiscal?
Como fazia pouco tempo que assumira funções públicas na Província, e o porto não fosse o lugar onde eu devesse estar presente àquela hora, eu só conhecia umas poucas pessoas e, também, só uns poucos me conheciam, como Antônio Bento, por exemplo.
Então, depois de pensar e pensar por alguns segundos, decidi que iria calar de vez o intruso, e do alto dos meus tamancos neerlandeses, talvez a peça da minha indumentária que o tal comandante estivesse censurando, respondi firme:
⏤ Sou o Tenente-Coronel Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan, presidente da Província da Parahyba do Norte, às suas ordens! E emendei, mas sou brasileiro de Niterói e conheço o mundo, disse-lhe, ironizando sua estranheza e modos grosseiros de marujo que nunca saiu da costa. ⏤ E quanto aos meus “tamancos holandeses”, se representam eles alguma esquisitice, costumo usá-los neste litoral chuvoso por causa da lama fria das ruas, e para isto, melhor calçado não há!
O tal comandante, então, empalideceu e desistiu da conversa que iniciara. Teria meu extenso nome lhe dito alguma coisa que ele não quisesse ouvir? E sem esperar respostas, logo procurou se afastar, indo na direção do seu barco, mas o fez resmungando:
⏤ Ora mais, só o que faltava: ⏤ Tenente-Coronel! Que Tenente Coronel que nada, exclamou entre dentes. ⏤ Não deve passar de mais um forasteiro.
Nessa caminhada noturna e não usual, já de volta a palácio, me vi diante de um momento de grande pesar. Na casa 149, da Rua da Imperatriz, senhoras chorosas e tristes, muitas delas vestidas de preto e usando véu sobre a cabeça e os ombros, em velório, rezavam o terço de Maria pelas almas de duas falecidas, e o faziam em voz baixa, creio que para não incomodar a vizinhança. Os homens ficavam fora, no passeio, a conversar trivialidades, ao que notei.
Curioso em saber o que houvera, perguntei os nomes das indigitadas jovens. Responderam-me que ali estavam os corpos de Maria das Graças e Maria das Dores, irmãs, filhas de pais que sempre moraram naquele local. Por motivos que me tocaram fundo, quis saber um pouco mais sobre cada uma delas, mas nada acrescentaram ao que já havia sido dito. Respeitei!
Soube depois que Maria das Graças, a mais velha, era uma bela jovem de quatorze anos e meio, e Maria das Dores, uma linda menininha de onze anos e meio de idade, e que morreram por afogamento, em banho às escondidas, na ponte do Sanhauá, um hábito que tinham os ribeirinhos e os que moravam por perto. As águas profundas e barrentas nas proximidades da ponte onde se divertiam, eram muito procuradas, mas muito perigosas.
Esta situação, rápido, me remeteu a Elisa, minha filha, de mesma idade que Maria das Graças, e que ficara com sua mãe Guilhermina e os avós paternos no Rio de Janeiro. Desta forma, pensando nos meus e na fragilidade que cerca nossa vida, e refletindo sobre os fatos que estava presenciando, roguei aos céus por aquelas crianças a prece pela qual tenho predileção e que me foi ensinada em tenra idade por minha avó materna, a anglo portuguesa Maria Margarida Skeys Rohan, e que depois eu mesmo ensinei à Elisa.
O pai das meninas, de plano, agradeceu o meu gesto e ali parado e contrito, diante da casa 149 da Rua da Imperatriz, depois de alguns segundos de reflexão, comecei a rezar, em silêncio, a Ave Maria!
Após isso, me solidarizei com familiares e o chefe da família me convidou para adentrar a sala onde estavam esquifes de cor azul. Resisti e lhe disse que já havia feito uma prece pelas duas, dali mesmo, e já era noite alta, eu precisava prosseguir com minha caminhada e me recolher.
E buscando relaxar um pouco mais, ainda parado diante da casa 149, respeitosamente, pedi licença para fumar um dos meus “Flor de las Antillas”, no que fui prontamente autorizado.
No outro lado da rua, cães famintos e gatos amedrontados disputavam as poucas sobras do dia, deixadas na frente de casa à espera da coleta pública. Àquela hora não se via viv’alma pelas ruas da cidade. Segui em frente, e caminhando pela Rua da Imperatriz, cheguei ao terreno onde planejei construir um jardim botânico com o propósito de que ali funcionasse também uma escola de agricultura.
O imóvel cedido por Joaquim da Silva Guimarães Ferreira se situava atrás do palácio do governo, para onde eu estava me dirigindo, e tinha como limites a Rua da Imperatriz, ao sul; a Rua do Império, ao norte; a Rua da Medalha, a leste; e a Rua Formosa, a oeste.
Dentro dos esforços de melhorar a qualidade de vida da cidade, meu plano é dotar essa área de um espaço verde capaz de atuar como área de lazer, respiradouro e filtro de ar, eliminar os pântanos e a insalubridade, dar mais consistência ao solo urbano na Cidade Baixa. Como suporte à minha proposta, solicitei estudos a Alfredo de Barros, cujo resumo é a Planta da Cidade da Parahyba, elaborada por ele em 1858, um ano depois de minha chegada à cidade.
Passados alguns dias, sem que eu tivesse tido qualquer injunção no fato, fui informado por bilhete escrito a lápis crayon que a folha corrida do inoportuno comandante, operador de barcos entre os portos de Natal, Parahyba e Recife, andava tingida por marcações em vermelho nada abonadoras.
Após fechar o círculo completo desta caminhada, me recolhi aos aposentos do palácio e embora impressionado com o que vi e ouvi no périplo noturno que empreendi, consegui o que buscava: dormir pelo resto da noite.
Post-Scriptum:
Este texto é obra de ficção escrita na primeira pessoa. Verossimilhanças e correspondência com fatos, nomes, datas reais, e que são do conhecimento histórico e da vida da cidade, foram utilizados, meramente, para compor arranjo ficcional autoral. Sob todos os ângulos, são inspiradores a qualquer analista ou escritor, o humanismo e a densidade de pensador, cientista, militar, administrador e homem público nacional Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan (12.05.1812 - 19.07.1894), presidente da Província da Paraíba do Norte, de 1857 a 1859, transformado em protagonista (personagem central e principal narrador) destes escritos tocantes, porém despretensiosos, em razão do impacto que me causou a extraordinária e carismática personalidade que em torno dele visualizei ao ler ou compulsar robustas fontes bibliográficas e documentais, como requisito de outros trabalhos.
Este texto é obra de ficção escrita na primeira pessoa. Verossimilhanças e correspondência com fatos, nomes, datas reais, e que são do conhecimento histórico e da vida da cidade, foram utilizados, meramente, para compor arranjo ficcional autoral. Sob todos os ângulos, são inspiradores a qualquer analista ou escritor, o humanismo e a densidade de pensador, cientista, militar, administrador e homem público nacional Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan (12.05.1812 - 19.07.1894), presidente da Província da Paraíba do Norte, de 1857 a 1859, transformado em protagonista (personagem central e principal narrador) destes escritos tocantes, porém despretensiosos, em razão do impacto que me causou a extraordinária e carismática personalidade que em torno dele visualizei ao ler ou compulsar robustas fontes bibliográficas e documentais, como requisito de outros trabalhos.