Poesia exige um leitor especial. Não é qualquer um que é habilitado (pelos deuses?) a adentrar sua linguagem, seus segredos e sua beleza. Não importa que o leitor seja afeito aos romances, aos contos, às crônicas e aos ensaios; se ele não possuir a chave dessa porta estranha chamada poesia, ele jamais penetrará nessa casa de tantas moradas; permanecerá sempre do lado de fora desse refúgio de eleitos, dessa confraria de escolhidos. Por isso, são poucos os leitores desse gênero literário, são escassas as vendas dos livros de poemas, apesar de serem muitos os que se aventuram a escrever e publicar nessa seara aparentemente fácil, mas tão arredia, como bem sabem os verdadeiros bardos, os que adotaram, por vocação, essa difícil forma de expressão pela palavra.
Vejo em todo poeta antes de tudo um resistente, pois perseverar num gênero que, normalmente, dá pouco retorno, em termos de público e de reconhecimento, exige uma fidelidade às musas muito grande e uma certa indiferença ao êxito mundano, qualidades só encontráveis nos autenticamente vocacionados. Foi-se o tempo romântico em que os poetas eram tidos como ungidos do Olimpo, tempos em que, só por serem poetas, conquistavam amores das mulheres e admirações dos homens, tempos em que, pálidos e boêmios, pareciam carregar não só as dores do mundo mas também o dom exclusivo de expressá-las. Haveria hoje lugar para um Castro Alves ou um Augusto dos Anjos? Agora os poetas são funcionários públicos sem nenhuma aura nem mitologia. E mais: na maioria dos casos, sem um rosto reconhecível, como um dia tiveram Bandeira, Drummond, Vinícius e Ferreira Gullar, por exemplo.
Os poemas são romances, contos, ensaios ou memórias resumidos. São súmulas em que se diz muito com palavras poucas, pacientemente escolhidas, ao modo pessoal do poeta, unindo forma e conteúdo para belamente comunicar ideias e emoções, sem clichês nem pieguismo. Daí requererem um leitor especial, apto, em termos de cultura e de sensibilidade, para decifrá-los e frui-los. Não que sua linguagem seja propositalmente hermética, para iniciados, mas há que se revestir o leitor de certos pressupostos, a fim de poder frequentá-los. Definitivamente, estão mais para biscoito fino que para feijoada, os poemas, pérolas que não se atiram a qualquer um.
Faço essas divagações iniciais para poder pisar, reverentemente, o Chão Lavrado de Carlos Alberto Jales, seu mais recente livro de poemas (Editora Ideia, João Pessoa, 2022), agora discretamente publicado. Quinto livro do autor no gênero poético, sucede, mantendo a mesma elevação lírica, a Inventação das Horas, Áspero Silêncio, Vindimas da Solidão e Palavra Submersa, volumes que, a partir do título, mostram a reconhecida estatura do poeta. Fiel a si mesmo, Jales continua a percorrer caminhos anteriormente trilhados, confirmando a tese de que, normalmente, os temas dos artistas são sempre - ou quase sempre - os mesmos, como se em suas obras várias ruminassem as mesmas obsessões, como costumam fazer os pacientes no divã dos psicanalistas.
No prefácio, Hildeberto Barbosa Filho, poeta e crítico, faz uma oportuna e correta advertência: “Aqui, não procure o leitor, malabarismos experimentais, ousadias linguísticas, sondagens espaço-visuais, sintaxe tipográfica, neologismos e desconstrução lexical que tanto atraem epígonos e diluidores das ilusões vanguardistas. Herdeiro, diria, do segundo modernismo, ou seja, dos modernistas modernos, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Mário Quintana, Augusto Frederico Schmidt e Henriqueta Lisboa, entre outros, Carlos Alberto Jales assume o lirismo reflexivo para representar os conteúdos da memória, do tempo, da infância, da maturidade, da palavra, da solidão, do silêncio e, nesta coletânea em especial, do mar e suas implicações simbólicas”. Nestas palavras, com efeito, está dito tudo o que se pode dizer sobre o poeta e sua obra. Jales é antes de mais nada um lírico; seu estilo, por sua sobriedade, tende ao clássico, no melhor sentido da palavra, e sua temática é eterna, posto que aborda questões atemporais, próprias de nossa precária humanidade.
Sobre o título Chão Lavrado, impõem-se algumas considerações rápidas deste simples leitor. Primeiro a singela beleza, que repete a dos títulos anteriores. Duas palavras comuns, chão e lavrado, e que, no entanto, são tão ricas de significados, principalmente se tomadas levando-se em conta não só o livro em si, mas também a própria trajetória do poeta. Depois, chão lavrado, sabemos, é a terra que foi trabalhada pelo agricultor; e representa, num certo sentido, o trabalho concluído pelo camponês, à espera agora da semeadura e da colheita. Pergunto então: esse chão de Jales seria preparação ou conclusão? Seu chão poético não terá sido, além de lavrado, também semeado, sendo cada poema uma sementinha prometedora de futura ceifa? Tudo são hipóteses hermenêuticas. O autor tem certamente sua versão, mas ela, sabemos, não é a única possível – nem necessariamente a mais correta, já que os leitores também têm direito à sua. Quanto a isso, pode-se até dizer que o autor põe e o leitor dispõe, já que é o senhor derradeiro de toda obra.
Hildeberto acertou também ao observar a expressiva presença simbólica do mar no Chão Lavrado. Paradoxo? De jeito nenhum. São os mistérios da poesia, simplesmente. Aqueles mesmos que poderiam fazer o sertão virar mar e o mar virar sertão, para usar a bela expressão atribuída a Antônio Conselheiro.. Se o poeta assim deseja, tudo é chão e tudo é mar, porque, como a todo artista, ao poeta tudo se permite.
Esclarece Jales, em suas “Palavras ao leitor”, que a poesia é muito mais uma forma de perguntar que de responder. De fato. Ao poeta – e aos artistas em geral –, não cabe oferecer respostas a ninguém. Se ele consegue oferecer ao leitor indagações que este próprio formularia, já está de bom tamanho. O poeta não é um ideólogo nem um doutrinador. É um eterno aprendiz da vida. E se é verdadeiramente bom, assim permanecerá, nunca sonhará em ser professor de ninguém.
Poderia destacar vários poemas que foram do meu especial agrado, porque tocaram, em alguma medida, uma certa corda de minha lírica pessoal. Transcreverei a seguir, para concluir, O poema eterniza o instante. Que ele sirva como aperitivo para o leitor sedento de muito mais.
“O poema eterniza o instante
O poema eterniza
o instante:
luzes na madrugada,
canto órfico dos pássaros,
vozes dispersas que não se encontram.
O poema eterniza
o instante:
e se recolhe a velhos mosteiros
à espera de rituais de silêncio.”
E o poema eternizou também o instante em que foi escrito. Bravo!