Foi longo, porém agradável, o período de estudos e coleta de informações, em vista da realização do documentário Meu Jaguaribe, filme roteirizado e dirigido pelo cineasta Mirabeau Dias, lançado no auditório do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, no bairro do Jaguaribe, no dia 25 de outubro 2017, do qual me sinto orgulhoso de ter sido um dos participantes.
Tais estudos me levaram a “tietar” ainda mais o bairro onde minha vida profissional teve início, em João Pessoa. Nos idos de 1975-76, servindo ao Planejamento Estadual, trabalhei no bairro, o que me obrigava a entrar ou sair dele, pelo menos duas vezes por dia. Vindo de Cajazeiras, depois de quatro anos de magistério lá, por meros detalhes financeiros não fixei residência no Jaguaribe, como planejara.
A vagar pela cidade ou em deslocamento de casa para o trabalho, eu dispunha de várias portas de acesso ao Centro Administrativo, pois o Jaguaribe se cola ao Centro e Torre e ao Rangel e Cruz das Armas, e havia corredores expressos para quem saindo da UFPB, onde logo depois passei também a trabalhar, ou de qualquer outro lugar da cidade que eram caminhos quase diretos para quem quisesse chegar ou sair desse polo da administração estadual.
Por tais motivos e por sempre estar a percorrer o bairro, passei a fazer observações de caráter urbanístico, demográfico, comportamentais e culturais ali, por interesses do planejamento urbano e das disciplinas que ministrava para alunos do curso de Geografia e outros.
Por essas investidas, pude obervar que desde os primórdios, no final do século XIX, o bairro já era um dos locais preferidos para a moradia de quem migrava para a capital. Indivíduos de diferentes procedências rurais e categorias socioeconômicas, o demandavam em vista do encaminhamento de seus negócios, do êxodo rural pelas insatisfatórias condições do campo, aí se fixando à esperança de trabalho, por causa da escola dos filhos ou, simplesmente, à busca da cura de suas esposas enfastiadas com a monotonia da vida no campo. Com alguma vivência anterior na cidade, com certa facilidade essas famílias logo se adaptavam ao modus vivendi que passavam a ter no Jaguaribe ainda urbano-rural pelo qual optaram.
Colhi de indivíduos com os quais conversei, e constatei também em dados e autores compulsados que a escolha do Jaguaribe como local de residência se devia muito às facilidades que a localização oferecia para entrada ou saída da cidade. Não enfrentavam percalços com o trânsito, ou incômodos com a vizinhança por suas cargas e tralhas, e ainda podiam, na frequência desejada, trazer produtos do campo para suporte ao consumo doméstico: pequenos animais para abate, aves e ovos, carnes, hortifrutigranjeiros, leguminosas e tubérculos, mantimentos, lenha e carvão, dentre outros que minoravam custos de casa. Assim, para essa a moradia periurbana vinham também vacas leiteiras, galinhas poedeiras, os leitões do Natal, pássaros e aves de estimação, carnes e, de vez em quando, até os cabritos do churrasco. Observo que este é um hábito que, em parte, a cidade do terceiro milênio ainda não jubilou. Daqui mesmo, do meu 5º andar, em Tambaú, por generosas janelas, vejo lá embaixo o galinheiro que o vizinho oitentão, de ancestralidade camponesa, mantém em quintal de 04 x 12, indiferente a qualquer tipo de restrição.
Esta ancestralidade, a meu ver, continua a influenciar pessoas e sempre digo aqui em casa que em matéria de meio ambiente “somos muito atuais”, pois o colégio em frente de onde moro, para estímulo à educação ambiental de seus alunos, implantou em espaços internos, pequeno parque de onde me chegam o berro matinal da vaca, o bééé sensualizado de cabritas, o grito cortante do pavão, o tofraco da galinha d’angola, e uma confusão de sons graves de pequenas aves e pássaros que, de ouvido e daqui do alto, ainda não consegui identificar.
Como um homem de origem e hábitos campestres, também, nada disso me tem incomodado. É como se morasse numa chácara. Desperto todo dia aos acordes agudos de um pedrês carijó, caipira, que com crista, bico, esporões e pose de campeão, sem o ser, exibe-se pomposo e se esgoela nas madrugadas, em ecos que, saídos de casa exprimida entre duas altas torres, me alertam de que mais um dia de trabalho está prestes a começar; ou me acordam poedeiras de mesma plumagem, com o demorado refrão que apregoam à exaustão, não esquecendo um dia sequer de propagandear aos quatro ventos o último feito.
Desde seu surgimento, o bairro se caracterizou por ocupação bem demarcada de territórios. Embora visivelmente diferenciados, por localização, design e padrões socioeconômicos, casas, ruas e quarteirões ali se avizinhavam permitindo vida, solidariedade e convivência, em harmonia, a usineiros do açúcar, fazendeiros do algodão, empreendedores livres ou remediados, comerciantes de todos os níveis, trabalhadores autônomos, e estratos formados por empregados domésticos, garçons, funcionários públicos e comerciários.
Para muitos, a Balaustrada João da Mata, a Feira do Jaguaribe, os antigos cinemas, a Praça dos Motoristas, a Praça Vela Vista, a Escola Industrial, a Igreja do Rosário, os Piratas do Jaguaribe, o carnaval, as festas religiosas e sua extensão profana, formavam as identidades materiais e imateriais mais simbólicas do bairro. A saída do Clube Cabo Branco e o fechamento dos cinemas foram traumáticos ao bairro e são lamentos ainda relembrados. Percorrer o bairro, conversar com moradores, ex-moradores, ouvir opiniões e depoimentos, fotografar e levantar informações me levaram a um melhor conhecimento do bairro e, de modo especial, a entender a alma de um lugar diverso, complexo, porém acolhedor e que se distingue de outros por históricas e acentuadas singularidades.
Para os trabalhos do documentário, li tudo o que vi pela frente; de livros a TCCs-Trabalhos de Conclusão de Cursos de Graduação, dissertações de mestrado, teses de doutorado; li também artigos e poemas; ouvi canções langorosas, boêmias e nostálgicas; e vi, finalmente, vídeos e filmes, informações estas que, de certa forma, me permitiram penetrar o íntimo de um bairro conservador, mas em processo de transformação socioespacial que um dia, por certo, será assediado pela verticalização voraz que lhe já lhe ronda, e que uns anseiam, pelo candente desejo de reciclar bens, e outros rejeitam, por desinformação ou preconceito, ou “por não quererem trocar suas casas por gaiolas”, como se ouve de alguns por lá.
Pelos processos localizados de ocupação territorial urbana, depois do Varadouro e do Centro, vem o Jaguaribe que, na linha do tempo, surgiu como o terceiro bairro da cidade. Os três estão ali juntinhos, conurbados, colados como irmãos siameses, mas não nasceram juntos. Formaram-se um depois do outro, com algum delay entre eles. O Varadouro tem início em1585, o Centro, nas primeiras décadas de 1600, e o Jaguaribe a partir dos anos de 1880. A separá-la dos dois, as encostas do Varadouro e a Ilha do Bispo, pelo lado oeste; pelo lado sul, as Avenidas João Machado e Pedro II; e no norte, os bairros do Roger e Tambiá.
Pelas plantas da cidade, o bairro do Jaguaribe começa a pouco mais de um quilômetro do Ponto de Cem Réis, portanto, a pequena distância do Centro antigo, na direção sul, e termina às margens jaguares do rio, nos limites com o bairro do Rangel; está confinado entre o verde da Mata do Buraquinho, a leste e as vertentes da Ilha do Bispo, a oeste; na direção norte-sul, estende-se das Avenidas João Machado e Pedro II, aos bairros de Cruz das Armas e Rangel.
Muito da fisionomia antiga do bairro do Jaguaribe ainda se conserva. E o mais singular é que ele parece mais que um bairro; é mais do que espaço expandido que transbordou em razão do crescimento do Centro. Vejo aí “o espaço fora do lugar”, de Milton Santos, o celebre geógrafo baiano de respeito internacional.
O Jaguaribe é um espaço humanizado, sentido, vivenciado, cantado em prosa e verso, progressista e lembrado a partir de elementos que vão além de forma e imagem; além do concreto e do imagético, abarcando aspectos, categorias e representações sociais circunscritas diretamente a conceitos intangíveis, como saudade, lembrança, nostalgia, como a população do bairro e ex-moradores traduzem seus próprios sentimentos de pertença.
Deste modo, com história complexa e singular no contexto urbano de João Pessoa, o bairro, por elementos de intangibilidade moldou um imaginário que há décadas encanta e hipnotiza jaguaribenses puro sangue, como Genival Veloso, Martinho Campos, Carlos Pereira, José Pequeno, Daura Santiago, Emilson Ponce Ribeiro e quantos mais lá viveram ou o visitam com olhar atento.
Ruas das Trincheiras
Sem esse caráter, o Jaguaribe seria apenas mais um bairro, igual a tantos outros. Retratando estrutura socioeconômica estratificada, as taipas antigas de adobe e cobertura de palha, o casario mais simples dos fundões do bairro os casarões mais vultosos e os prédios públicos e privados compunham síntese harmoniosa de vida urbana a testemunhar, no tempo, como foi seu passado, notadamente, o das décadas de 20 a 60 do século XX.Não será exagero meu afirmar que aí floresceu, em tempos idos, certa “Nação Jaguaribe”, com valores e peculiaridades inconfundíveis transformadas em símbolo, orgulho cultural e imaterial de quantos lá tiveram raízes.
Edificações históricas em Jaguaribe
Com vida própria e relativa autossuficiência, desde tempos idos, o bairro já menos dependente do Centro e Varadouro exibia certa autonomia. Tinha até jeito de pequena cidade. Abrigava gente vinda de derredores da capital, e do Sertão, do Brejo, da Borborema, das Espinharas, dos Vales do Paraíba, do Piancó, do Sabugi, do Piranhas, do Mamanguape, do Curimataú, do Gramame e até do Calabouço; de Campina Grande e adjacências. Indivíduos de Patos Sousa, Cajazeiras, Catolé do Rocha, Guarabira, Picuí, Monteiro e de outros lugares. Comemorando datas religiosas ou cívicas, o carnaval, ou folguedos como a Malhação do Judas e as Lapinhas, ou abrindo os modestos salões dos seus cinemas, colégios, paróquia e associações, o bairro transbordava cidadania.E uma pergunta que ainda não fiz a João Batista de Brito, fecundo escritor e cinéfilo de escol: ⏤ como explicar tantos cinemas em, uma mesma época, num bairro ainda tão pequeno como o Jaguaribe da sua infância?
Prédio do antigo cinema Santo Antônio, onde atualmente funciona a Casa da Cidadania, na Avenida Vasco da Gama ▪ Imagem Alphabet
O Jaguaribe não era simplesmente um bairro-dormitório e muitos eram os que moravam e tinham trabalho lá mesmo. As inter-relações com o Centro antigo e bairros do entorno se davam de maneira intensa. Partindo do Centro antigo, uma linha de bonde cruzava internamente o bairro e outra o cortava, lateralmente, estendendo-se a Cruz das Armas.A pé, de bonde, de sopa ou marinete, convergiam para o Jaguaribe os que buscavam escolas, hospitais, salas de cinema, clubes sociais, o prado e os campos de futebol; o comércio de vizinhança, os ofícios e o serviço dos artífices e artesãos; os que buscavam os folguedos populares e os eventos que envolviam o bairro em concorrido lugar de diversão e lazer, por suas novenas, vias sacras, festa da padroeira em que não faltava algodão doce, circo, palhaço e roda gigante.
Igreja Nossa Senhora do Rosário, na Avenida Primeiro de Maio ▪ Imagem Alphabet
Tempos se passaram e a malhação do Judas, os festejos juninos, o carnaval de rua, as festas de clubes, os assustados e as missas domingueiras ainda são recordações que não saíram do imaginário de muita gente. E quando o filme era bom, a cada sessão, as filas davam volta no quarteirão.A Igreja do Rosário, os Hospitais Napoleão Lauriano, Clementino Fraga e Cândida Vargas, os cines Santo Antonio, São José e Jaguaribe, a Escola Industrial, os Colégios e Grupos Escolares comandavam o cotidiano do bairro, num vai e vem de gente que cresceu ainda mais com a chegada da Escola Industrial e Centro Administrativo, anos depois.
Centro Administrativo do Governo do Estado da Paraíba, na Rua Frei Martinho ▪ Imagem Alphabet
Apesar de vozes contrárias, a mudança do local original da Feira Livre do Jaguaribe, das proximidades da antiga Escola Industrial e da Balaustrada, para as bordas da Mata do Buraquinho, historicamente, representou mais ganhos do que perdas. De tanto êxito alcançado, dado o volume de negócios que movimentava e devido ao número de pessoas envolvidas, o governo municipal passou a classificá-la como Mercado Público. Na verdade, esta feira é um grande mercado a céu aberto no bairro. E sobre ela se afirma: “A Feira do Jaguaribe é a mais completa feira da cidade”. É por isso que “Feira do Jaguaribe”, por avaliação, é o conceito que a coloca “como a principal representação social na formação da identidade do bairro”.Feira de Jaguaribe, entre as ruas Generino Maciel e Jáder de Carvalho Nunes ▪ Imagem Alphabet
O bairro foi o berço de várias gerações de jovens pobres, cuja ascensão social se dava principalmente pela Educação. O ensino primário de qualidade, oferecido no próprio bairro, era o passaporte para a continuação da formação no Lyceu Paraibano, Escola Normal, Colégios Pio X, Pio XII, Lourdinas, Lins de Vasconcelos e outros. A educação seria, sem dúvida, o fator que não tardaria em transformá-los em cidadãos ilustres a comandar a vida da cidade e do Estado, como médicos, engenheiros, advogados, magistrados, professores de todos os níveis de ensino, músicos, esportistas, administradores, governantes, servidores públicos, políticos, artistas, homens de negócios, religiosos e outros. Espera-se que as “feridas” da vizinha Trincheiras não contaminem o bairro, pois requalificação de áreas urbanas no país, hoje, é também “pandemia nacional incurável” que o abandono e ausência de planos tomaram conta.