O almoço com uma das cunhadas, num sobrado da Ladeira de São Francisco, permitiu-me a visita ao Varadouro, onde há muito eu não punha os pés. Gosto dessa área na calmaria dos domingos. Uma esticadinha de nada em manhã de brisa leve e lá estava eu no ponto da cidade que mais me atrai e envolve, com o perdão dos que preferem os trechos com edifícios e praias.
Revi a Igreja de São Frei Pedro Gonçalves, edificada em 1843 com mão de obra escrava e contribuição financeira de comerciantes e pescadores. O padroeiro, de origem espanhola, a quem se atribuía a proteção dos que se lançavam ao mar, foi canonizado ainda no Século 12. A estupidez institucional que fecha museus e igrejas aos domingos me impediu de ali entrar.
Em 2000, uma escavação da Cagepa, a companhia de águas e esgoto, resultava na descoberta a céu aberto, no meio daquele pátio, da base de uma muralha que muitos têm como resquício do fortim que deu origem à cidade. Quem entra no templo verifica outra escavação feita, nesse caso, para exibir em pleno adro parte daquilo que a equipe da empresa descobrira, lá fora, por absoluto acaso, 22 anos atrás. A Igreja fora construída, quase três séculos depois da fundação da cidade, em cima do tal muro, certamente, já então soterrado. Os buracos abertos pela Cagepa também ali ocasionaram a descoberta e o recolhimento de ossos humanos, moedas, peças metálicas e de cerâmica. Quem não lembra?
Estive no Hotel Globo. Pois bem, fruto da abnegação de Henriques Siqueira, pioneiro da hotelaria paraibana, o Globo hospedou durante bom tempo expressões da política, da economia e das artes regionais e nacionais. Localizado nas imediações do antigo Porto do Varadouro – àquela época, o coração pulsante de João Pessoa – o velho Hotel compõe, desde 1928, o conjunto arquitetônico do Largo de São Frei Pedro Gonçalves. Ergue-se, ali, com linhas nos estilos neoclássico, art nouveau e art déco, bem de acordo com o “movimento eclético”, assim definido pelo pessoal do ramo.
Gosto de imaginá-lo em seus melhores dias, quando abrigava bailes e banquetes frequentados pela fina flor da sociedade, ou visitantes famosos a exemplo de Procópio Ferreira, Bibi Ferreira e Tânia Carrero, como está nas propagandas do turismo. E me pergunto: ponto de encontro de expressões da política, do comércio e da agricultura, o que suas paredes ouviram no ano conturbado de 1930?
Há quem sustente que a inauguração, em 1935, do Porto de Cabedelo e o desvio para lá das exportações e importações da Paraíba foram a causa inicial de sua progressiva falência. E é bom lembrar que sua fase áurea foi de 1929 a 1938. Tombado pelo Patrimônio Histórico, suas instalações hoje abrigam painéis fotográficos da Câmara Municipal e do setor turístico.
Os passos seguintes me puseram, ali perto, na Praça Antenor Navarro. Não lembro como se chamava a jovem emissária do governo espanhol com quem estive nos idos da administração do prefeito Chico Franca. As apresentações foram feitas pelo ex-vereador Eduardo Araújo, então no comando da recém-criada Secretaria Municipal do Meio Ambiente.
Ela aqui aportara nos tratos do projeto de revitalização do Centro Histórico de João Pessoa com verbas da Espanha. Sua antecessora – cujo nome eu agora também diria se tivesse em mãos o acervo da extinta Revista A CARTA, onde produzi matéria sobre o assunto – havia iniciado os entendimentos, anos antes, para a recuperação do casario e monumentos dessa área.
Mas lembro que ambas, no transcurso de dois prefeitos, reclamavam de atrasos nas contrapartidas municipais de convênios firmados com esse intento. A equipe local do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, envolvida nesse esforço, se mortificava. E olha que João Pessoa fora escolha pessoal da primeira dessas moças, então apaixonada pela cidade, para insatisfação do baiano Antonio Carlos Magalhães empenhado, na ocasião, na recuperação do Pelourinho.
A Escola-Oficina, projeto cativante e oportuníssimo voltado para a profissionalização de jovens egressos de famílias pobres, já reproduzia, tal e qual, o gradil do Hotel Globo (aquele parapeito de onde o visitante contempla as águas do Sanhauá e os telhados do Varadouro), peças de madeira, ornamentos de paredes, pintura a capricho e jardinagem. A última notícia que tive dessa escola, um tempão atrás, é a de que passara a funcionar nas dependências da extinta Fábrica de Vinhos Tito Silva, na Rua da Areia. Ainda será assim?
Isso me veio à mente nessa minha visita ao local. Fotografei quase tudo o que ali vi com outra questão na cabeça: terão as belas fachadas dos sobrados em volta da Praça recebido as cores decorrentes da continuidade daqueles antigos convênios da Prefeitura com algumas fábricas de tinta mais importantes do País? Vou procurar saber.
Ah, sim. Também fui à Casa da Pólvora, uma edificação de 1710 situada quase no topo da Ladeira de São Francisco, uma das mais íngremes de João Pessoa. Surpreendi-me, ali, com a remoção do primoroso acervo do fotógrafo Walfredo Rodrigues. Que museu, agora, o abriga? Este ser preguiçoso e impaciente com o trânsito diário precisa revê-lo.
No lugar daquelas fotos de trechos de ruas que hoje apenas existem em páginas antigas, na memória e nos enredos dos mais velhos encontrei o inesperado na Casa da Pólvora: duas garotas que se pegavam, os bichos de estrebaria, os amigos Baltasar, Gaspar e Belchior, o casal formado por Maria e José e o menino Jesus, em sua manjedoura. A propósito, Feliz Natal.