Em mim não há, no momento, coisas que me dêem alegria suficiente para compartilhar, repartir. Estou andando na rua no exercício de buscar, dentro desse malote que me deram e tentaram me jogar fora da minha própria vida. Quero algo que me sirva e sirva pra alguém além de mim. Tudo é novo e estranho, nada me cabe ou cabe à memória que tenho sobre mim mesma.
Fico tentando me apegar ao que eu era, ao que pensei e sonhei para mim, a fim de não me perder, mas não consigo fazer isso por muito tempo. Me canso, Me canso muito. Busco ver em meio aos elementos que tenho comigo, algo que combine com essa vida que tenho agora – a minha, aquela onde eu era a filha, a irmã, a amiga, a professora, sei que não terei nunca mais, nunca mais! Muita coisa aconteceu fora desse trilho. Aconteceu e a resiliência humana permite que a gente vá se moldando, se refazendo.
Quem sabe, eu consiga ser feliz também em meio aos traços da injustiça, da perseguição, do apagamento e do abandono que encontro aqui nesse malote que me deram quando determinaram que eu não era quem eu sou. Por isso, preciso sair só.
O poder que vemos ser exercido na sociedade que temos, é assim: abre espaços para que alguns poderosos escolham pessoas e digam quem elas deverão ser, como se fossem mais que Deus. Pessoas que pensam e agem de forma diferente sobre o poder não podem existir aos olhos desses poderosos de plantão. O poder para alguns deles é algo que não pode ser compartilhado! Esse tipo de gente se sente ameaçada com muita frequência e agem, tão somente, para destruir a vida das pessoas que lutam para trazer o conhecimento e a partilha do poder às pessoas comuns.
Tudo com a única finalidade de justificar suas atitudes violentas. Montam a imagem de suas vítimas como se fosse a única verdade – e a verdade dos poderosos é a que prevalece. Senão por toda vida, mas pelo tempo suficiente para enriquecê-los, torná-los populares, heróis, enquanto desnudam, descapitalizam e matam de fome de justiça suas vítimas, sem o menor traço de pudor.
Se você é alguém escolhido para ser destruído, você luta, esperneia, chora, morre. E o tempo, que tudo resolve, nesses casos lhe impõe a nova vida de goela abaixo. Sabe aquele ditado “manda quem pode, obedece quem tem juízo”? Pois bem, a pessoa que insiste em viver, vai perdendo o juízo, vai se achando desequilibrada, meio louca, depois inteiramente louca. Vai se sentindo inadequada, como se não coubesse mais em lugar nenhum. Chega ao ponto de olhar seus parentes e amigos e vê-los (até eles!) indo para um lugar distante de você. O medo impera. O cabo de guerra, entre a lucidez e a loucura, entre a vida e a morte, se instala dentro de você imperiosamente.
Você que sempre gostou de distribuir simplicidade, luz e alegria, se vê carregando complexidades que lhe deixam, em alguns momentos, sem saída e se entrega à tristeza, ao sofrimento, à revolta, à dor e ao medo. Até porque você vai encontrando, no caminho, pessoas que vivem esse mesmo processo de injustiça, de arrebatamento ainda mais radical que o seu. Ainda mais cruel! “Ninguém solta a mão de ninguém”!
Esses “ninguéns”, tenho certeza, somos nós – as pessoas loucas que resolveram resistir e lutar. As que decidiram viver, mesmo que cada vez mais sozinhas! As mãos são as nossas e daquelas outras pessoas despertas, sintonizadas com a luta contra as injustiças. Aquelas pessoas que conseguiram manter intactos os seus corações amorosos e suas mentes sensíveis.
Estamos aqui, nós e elas, nos surpreendendo ainda com a maldade sem fim dos poderosos de plantão que, assim como nós, não desistem do seu plano. O deles de matar, o nosso, de viver e resistir.
Hoje, assim como ontem, fui tomada pelas novas-velhas maldades e despropósitos dos poderosos em direção a nós (estamos tão próximos e compreendemos tanto nossa dor que já não importa se é uma ou outra pessoa). Somos nós. Os feridos que insistem em sobreviver. Somos nós.
Mas, hoje eu quero ficar só, sair só, me dar a mão, me colocar no colo e respirar o poeta que diz que “o essencial é invisível aos olhos”. Acreditar nisso.
Amanhã, certamente, podendo ser gente e abraçar minhas companheiras e companheiros sendo luz e alegria novamente. Vou sair em grupo, e como disse o nosso mestre e reizin’bem coroado Chico César, cantar em alto e bom som: “eu e os meus companheiros/ queremos cumplicidade/ pra brincar de liberdade/ no terreiro da alegria”.