Vez por outra, recebia telefonemas dele e me surpreendia
com o que escutava do outro lado. Ao invés de um “tudo bem?”, ou o clássico “como vai?”, ouvia-o cantarolar. Sempre uma das canções que enfeitaram sua vida pródiga em música, clássica ou popular.
E, é claro, respondia-lhe com alegria inusitada dizendo que, em meio aos mortais, eu me sentia um filho privilegiado. Imagine só como é bom ouvir alguém, sobretudo um pai, que lhe liga para cantar pela manhã de um bom dia... Sem falar que, de outras vezes, ele punha o celular perto da caixa de som, de onde soavam trechos de suas favoritas sinfonias.
Frequentemente eu também brincava, quando ele demorava em me ligar para dar o seu bom dia. Perguntava se ele ainda não havia entendido que o meu dia não raiava na manhã em que não escutava a sua voz, falada ou cantada. “Viva!, finalmente o dia aqui amanheceu”, eu dizia e ele sorria.
O Último desejo, de Noel Rosa, era uma das que ele mais cantarolava. Não só nesses adoráveis telefonemas, mas em viagens, caminhadas, passeios de carro. Essa estrofe terminou se tornando mote e tema de andanças nossas pelo mundo:
“Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim”
Uma vez, vínhamos andando por uma das calçadas da vida, e diante deste verso, comentei: “que desilusão dessa mulher, dizendo que não merece um prato de comida, hein?”. Ele riu e eu lembrei de outra, de Antônio Maria, ainda mais desiludida, que lhe solfejei em seguida:
“Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso
E hoje descrente de tudo me resta o cansaço
Cansaço da vida, cansaço de mim
Velhice chegando e eu chegando ao fim”
Quando terminei, ele olhou pra mim e disse: “Essa é de lascar!”. E continuamos a viver...
Na verdade, o cronista Carlos Romero nunca foi tão dado às cantorias. Mas, parece que com a idade, que só lhe trazia felicidade, a vontade de cantar aumentou. Certa vez, ele disse que quando era garotinho quis cantar num programa de calouros da Rádio Tabajara. Àquela época, a emissora tinha notáveis e concorridos programas de auditório, com “cantores de rádio” e um deles se prestava ao concurso de calouros.
Num domingo ensolarado, todo pronto e perfumado, roupa nova e engomada, com o carinho de sua mãe, lá foi ele para o palco. “Balalaica” era a música, cujo tom e melodia davam risco à aventura. E por sorte ou desventura, logo na primeira estrofe, a corneta lhe expulsou da carreira de cantor. E daí o garotinho, na brancura de seu linho, volta triste em desalento para os braços da mamãe...
Com mais idade, a vontade do garoto renasceu e ele passou a cantarolar com mais frequência. Que coisa boa! Já se disse, há muito tempo, que cantar espanta o mal.
De outra vez, também viajando, quando ganhamos a rua, após o café, ele já cantava, enquanto caminhávamos, de braços dados, por uma calçada da Ilha de Paros, na Grécia. Percebi então que era sempre o mesmo “Último desejo”, de Noel Rosa, que ele andava repetindo. Em dado momento, eu disse. Está bom de variar este repertório. E ele, sempre bem humorado, respondeu: “Meu filho, deixe eu cantar, enquanto estou vivo. Depois, eu não canto mais”... Prometi, dali pra frente, nunca mais lhe sugerir outra música.
Alguns anos depois, ele não mais cantou. Preferiu se encantar. Foi na hora certa. Mas enganou-se quando supôs: “Depois, eu não canto mais”...
Cantarás, sim, papai, em qualquer lugar que estejas. Com a lição de tua vida, de poesia e bom humor, sábio como és, onde quer que tu te encontres, encarnado ou como espírito, teu encanto será canto para quem souber ouvir.