Meu querido Gonzaga,
Pensei em fazer algo diferente, para falar de seu livro "Com os olhos no chão". Já não me apetece a moda acadêmica das resenhas críticas ou da análise e da crítica literária. Não que eu não vá mais fazê-las, mas suas crônicas merecem bem mais. Por outro lado, meu querido, o texto de Antônio Barreto Neto, “Notas de um escritor no seu lugar de cronista”, que você escolheu como prefácio, está atual, apesar dos seus 44 anos, revelando o rigor e a sobriedade de quem sabe das coisas.
Recebi o seu livro como um grande presente de Natal. Sim, porque a cada crônica, sentia-me como renascido e atento à vida, degustando-a a cada frase que expressava, na sua simplicidade, a grandeza e a profundidade do olhar avisado do escritor, que se destaca na observação e transformação do que vemos e não percebemos. Completa-o o tom sóbrio do projeto gráfico de Juca Pontes, aliado à economia do lírico traçado de Flávio, num desenho que exprime a contemplação da vida, em que vemos encontrar-se “tudo muito longe, tudo muito perto” (Nino).
Viajo, meu querido amigo, na sua leitura, de braços dados com o lirismo, a política e o engajamento político, a história, o humor, a sensualidade, a discriminação, a fome, a miséria, a doença, a preocupação com o meio ambiente e com o descaso de nossa memória. Viajo com o cronista que se autodefine, que coloca os seus olhos, postos muitas vezes no chão, como o menino a catar moedas, mas com a cabeça ligada nas alturas, na tentativa de entender um pouco desse mundo que nos cerca. Viajo com as formas simples de seu escrever, revelando no corriqueiro e no estilo sem rebuscamentos desnecessários, uma vida dedicada à leitura e à literatura, criando perfis irretocáveis, como o de Nathanael Alves (As goteiras de Nathanael).
Os olhos no chão jamais dirão de um fechamento ou isolamento a respeito do meio circundante e dos seus circunstantes. Eles são capazes de ver a flor que fura as frestas do cimento ou fura o asfalto, como diria o poeta; a beleza da flor e da resistência da vida, que só quer uma desculpa – uma fresta de nada – para poder se insinuar, persistir e se realizar poeticamente à nossa frente, em que poeticamente se juntam “a flor, o pólen, o beijo alado, o fruto” (A floração de setembro).
Você, meu amigo, amigo que a madureza me deu, é um homem do tempo, que busca vencê-lo através do que escreve. Suas crônicas, em lugar de ficarem aprisionadas na estagnação da efemeridade jornalística, ganham a perpetuidade e a imortalidade do volume em livro, de onde a cada leitura, saem zombando do tempo, na transformação do, aparentemente, banal cotidiano, em verdadeira e atemporal vivência, o mais das vezes, poética, na percepção de que “o mundo, vasto ou pequeno, reside em nós mesmos” (Indo e vindo).
Como não me emocionar, meu amigo, quando a memória se impõe, nos dias já difíceis pelo simples ato de viver, mas que se tornaram mais árduos com a doença, com a internação, com o sanatório e o gosto das coisas que não aconteceram? A crônica da maçã me sabe à Maria Betânia de Capiba, naquele que é um dos versos mais bonitos sobre a saudade – “Beijo, que vive, com esplendor, nos lábios meus, para aumentar a minha dor”. E Jeconias, onde se vê claramente um livro de memórias delineado, que o amigo talvez relute em terminar e, se terminou, em publicar? Crônica esplêndida, no dilaceramento da dor e da aflição, mas permanente no coração, também expressando grande amor. Há ali, mais do que a memória autobiográfica, meu amigo. Há a criação literária inconteste, de que citarei um pequeno trecho:
Pensei em fazer algo diferente, para falar de seu livro "Com os olhos no chão". Já não me apetece a moda acadêmica das resenhas críticas ou da análise e da crítica literária. Não que eu não vá mais fazê-las, mas suas crônicas merecem bem mais. Por outro lado, meu querido, o texto de Antônio Barreto Neto, “Notas de um escritor no seu lugar de cronista”, que você escolheu como prefácio, está atual, apesar dos seus 44 anos, revelando o rigor e a sobriedade de quem sabe das coisas.
Recebi o seu livro como um grande presente de Natal. Sim, porque a cada crônica, sentia-me como renascido e atento à vida, degustando-a a cada frase que expressava, na sua simplicidade, a grandeza e a profundidade do olhar avisado do escritor, que se destaca na observação e transformação do que vemos e não percebemos. Completa-o o tom sóbrio do projeto gráfico de Juca Pontes, aliado à economia do lírico traçado de Flávio, num desenho que exprime a contemplação da vida, em que vemos encontrar-se “tudo muito longe, tudo muito perto” (Nino).
Viajo, meu querido amigo, na sua leitura, de braços dados com o lirismo, a política e o engajamento político, a história, o humor, a sensualidade, a discriminação, a fome, a miséria, a doença, a preocupação com o meio ambiente e com o descaso de nossa memória. Viajo com o cronista que se autodefine, que coloca os seus olhos, postos muitas vezes no chão, como o menino a catar moedas, mas com a cabeça ligada nas alturas, na tentativa de entender um pouco desse mundo que nos cerca. Viajo com as formas simples de seu escrever, revelando no corriqueiro e no estilo sem rebuscamentos desnecessários, uma vida dedicada à leitura e à literatura, criando perfis irretocáveis, como o de Nathanael Alves (As goteiras de Nathanael).
Os olhos no chão jamais dirão de um fechamento ou isolamento a respeito do meio circundante e dos seus circunstantes. Eles são capazes de ver a flor que fura as frestas do cimento ou fura o asfalto, como diria o poeta; a beleza da flor e da resistência da vida, que só quer uma desculpa – uma fresta de nada – para poder se insinuar, persistir e se realizar poeticamente à nossa frente, em que poeticamente se juntam “a flor, o pólen, o beijo alado, o fruto” (A floração de setembro).
Você, meu amigo, amigo que a madureza me deu, é um homem do tempo, que busca vencê-lo através do que escreve. Suas crônicas, em lugar de ficarem aprisionadas na estagnação da efemeridade jornalística, ganham a perpetuidade e a imortalidade do volume em livro, de onde a cada leitura, saem zombando do tempo, na transformação do, aparentemente, banal cotidiano, em verdadeira e atemporal vivência, o mais das vezes, poética, na percepção de que “o mundo, vasto ou pequeno, reside em nós mesmos” (Indo e vindo).
Como não me emocionar, meu amigo, quando a memória se impõe, nos dias já difíceis pelo simples ato de viver, mas que se tornaram mais árduos com a doença, com a internação, com o sanatório e o gosto das coisas que não aconteceram? A crônica da maçã me sabe à Maria Betânia de Capiba, naquele que é um dos versos mais bonitos sobre a saudade – “Beijo, que vive, com esplendor, nos lábios meus, para aumentar a minha dor”. E Jeconias, onde se vê claramente um livro de memórias delineado, que o amigo talvez relute em terminar e, se terminou, em publicar? Crônica esplêndida, no dilaceramento da dor e da aflição, mas permanente no coração, também expressando grande amor. Há ali, mais do que a memória autobiográfica, meu amigo. Há a criação literária inconteste, de que citarei um pequeno trecho:
“Dois dias antes eu chegara na ponta dos pés para ver, receoso, a ruína a que fora reduzido o meu melhor parceiro de conversas. Ele sempre acamado, cheio de travesseiros, animando a tristeza de um, esvaziando a apreensão de outro, como se a prisão ao leito fosse um estágio privilegiado de serena estabilidade.”
O livro tem até título, Gonzaga – Gonzarino – e já está meio escrito, começando bem lá do início, com a seção, devidamente separada das demais crônicas, chamada Meninos. Perdoe-me, meu querido, e não entenda como cobrança a feitura de mais um livro, mas que ele existe, disso eu não tenho a menor dúvida. São lembranças que vivem clamando, ainda que de modo doloroso e permeadas pela morte, a sua libertação, como aquele aboio aprisionado do vaqueiro que se expressa pela última vez, no pavilhão da enfermaria, transformado em parágrafo dos mais dolorosos de uma vida que se esvaiu:
“O canto, o aboio longo e pungente, estava derramado no lençol, ensanguentando a cama numa hemoptise que parecia mais da terra que do meu vaqueiro” (O canto derramado).
Não posso passar indiferente a essa escrita que transforma a perda em vida, perpetuada pela memória. Escrevo, portanto, Gonzaga, com grande emoção, causada pela leitura quase ininterrupta de um livro que só fortalece a admiração e o carinho que tenho por você. Emoção que se desprende das folhas e me toma, quando leio uma crônica como A mulher da foto. Para mim, meu amigo, é pura magia a delicadeza do seu olhar sobre uma foto antiga, fazendo da estaticidade do flagrante a própria dinâmica da vida, transportando o leitor para um passado que se presentifica. A crônica é pura poesia, que o diga o parágrafo final:
“Não estava previsto no Eclesiastes? A mulher passou, o vestido acabou, o amor também, mas a vida não desceu totalmente a colina. Está aqui na foto, que é sépia, nem tão muda nem tão unidimensional que não possa ter sido ontem o mesmo amor de hoje.”
Em toda a crônica não há o que se costuma chamar de “palavra difícil” ou artificiosa. O texto flui, naturalmente, tranquilo, manso, acompanhando o tempo da foto, o seu ambiente, a cronologia do momento ali gravado. É você, meu amigo, nos falando ao pé do ouvido, deferência com que tantas vezes já fui brindado.
Na narrativa, sente-se uma dupla fruição: a da memória, resgatada pelo olhar, que emana da foto; a fruição do texto, que flui para dentro do leitor, tornando-o espectador e cúmplice do acontecimento, caminhando junto ao momento flagrado, na esperança de desvendar o mistério da mulher “verdinha”, no silêncio da “rua, só e absoluta”, insinuando “vestígios de amor nesse instante fotográfico”. Simples e natural fruição. Grandiosa e incomensurável fruição. Texto para ser emoldurado e posto nas salas de aulas de todas as escolas, como exemplo inquestionável do que é o saber e o sabor do escrever.
Alonguei-me, meu amigo, e poderia ir mais adiante, embalado, sem exageros no que digo, pelo encantamento do seu texto, a me comprovar, com o perigo de me repetir, que a crônica conhece dois momentos importantes: um é quando de sua publicação no jornal, aquele “texto de um palmo, escrito às carreiras, com previsão para durar um dia, uma hora, nem sempre sobre assunto grave ou tema republicano” (A morte perdeu seu tempo). O outro, quando ela passa a fazer parte de um livro, dialogando com os outros textos similares que a acompanham, de que vai surgindo, de modo mais claro e uno, para o leitor, o estilo inconfundível do cronista. Enquanto se encontra no jornal, a crônica se isola na diversidade que a circunda, sendo por ela, muitas vezes, engolida, ainda que, momentaneamente, encontre repercussão em algum leitor, no breve instante de sua leitura. Se nesse momento breve, a crônica transcende o aspecto múltiplo e fugaz do jornal, no livro ela se mostrará ainda melhor, por não se dispersar na variedade dos assuntos. E o cronista se revela, em ou outro momento, quando o fato trivial ultrapassa os limites do comezinho, ganhando a autonomia, o viço e a sustança que a poíesis lhe concede.
Você, meu querido amigo, na sua humildade de andar com os olhos no chão e de nunca se lamentar ou mendigar reconhecimento, sempre se fez maior aos meus olhos, com a beleza das coisas ditas e, sobretudo, das não-ditas, com aquele gosto proposital de incompletas, mas cheias das sinuosidades machadianas, que põem a trabalhar a nossa imaginação, viajando nos intervalos incertos da “sem-resistência” da prima Salete (Rosa de Garanhuns), tomada pela possibilidade do amor, a melhor das incertezas que alegram o nosso coração.
Grato, gratíssimo, pelo presente, que acolho com o meu melhor abraço e o espírito em festa.
Do seu,
Milton Marques Junior
Na narrativa, sente-se uma dupla fruição: a da memória, resgatada pelo olhar, que emana da foto; a fruição do texto, que flui para dentro do leitor, tornando-o espectador e cúmplice do acontecimento, caminhando junto ao momento flagrado, na esperança de desvendar o mistério da mulher “verdinha”, no silêncio da “rua, só e absoluta”, insinuando “vestígios de amor nesse instante fotográfico”. Simples e natural fruição. Grandiosa e incomensurável fruição. Texto para ser emoldurado e posto nas salas de aulas de todas as escolas, como exemplo inquestionável do que é o saber e o sabor do escrever.
Alonguei-me, meu amigo, e poderia ir mais adiante, embalado, sem exageros no que digo, pelo encantamento do seu texto, a me comprovar, com o perigo de me repetir, que a crônica conhece dois momentos importantes: um é quando de sua publicação no jornal, aquele “texto de um palmo, escrito às carreiras, com previsão para durar um dia, uma hora, nem sempre sobre assunto grave ou tema republicano” (A morte perdeu seu tempo). O outro, quando ela passa a fazer parte de um livro, dialogando com os outros textos similares que a acompanham, de que vai surgindo, de modo mais claro e uno, para o leitor, o estilo inconfundível do cronista. Enquanto se encontra no jornal, a crônica se isola na diversidade que a circunda, sendo por ela, muitas vezes, engolida, ainda que, momentaneamente, encontre repercussão em algum leitor, no breve instante de sua leitura. Se nesse momento breve, a crônica transcende o aspecto múltiplo e fugaz do jornal, no livro ela se mostrará ainda melhor, por não se dispersar na variedade dos assuntos. E o cronista se revela, em ou outro momento, quando o fato trivial ultrapassa os limites do comezinho, ganhando a autonomia, o viço e a sustança que a poíesis lhe concede.
Você, meu querido amigo, na sua humildade de andar com os olhos no chão e de nunca se lamentar ou mendigar reconhecimento, sempre se fez maior aos meus olhos, com a beleza das coisas ditas e, sobretudo, das não-ditas, com aquele gosto proposital de incompletas, mas cheias das sinuosidades machadianas, que põem a trabalhar a nossa imaginação, viajando nos intervalos incertos da “sem-resistência” da prima Salete (Rosa de Garanhuns), tomada pela possibilidade do amor, a melhor das incertezas que alegram o nosso coração.
Grato, gratíssimo, pelo presente, que acolho com o meu melhor abraço e o espírito em festa.
Do seu,
Milton Marques Junior