Nada mais incentivador para a elaboração deste ensaio do que a leitura prévia de alguns comentários soltos com os quais me deparei, e u...

Bairro do Varadouro: do protagonismo inicial ao atual estado de deterioração

historia arquitetura preservacao paraiba centro joao pessoa
Nada mais incentivador para a elaboração deste ensaio do que a leitura prévia de alguns comentários soltos com os quais me deparei, e uma olhadela num dos quadros atribuídos ao paisagista neerlandês Frans Post (1612-1680), que comporia o acervo do Museu do Louvre, em Paris.

O quadro de Post, do período de sua permanência no Brasil (1637-1644), como membro de comitiva trazida a Pernambuco por Mauricio de Nassau, revela-se tão identificável e autêntico que, mesmo sem assinatura, data ou certificação, como ocorre, ficaria difícil se aceitar de que não são paisagens das margens do Sanhauá-Paraíba, as que ali estão retratadas. Por ângulos e perspectivas, não há quem diga que a panorâmica captada pelo artista, para retratação em tela, não tenha tido a tenda armada nos quintais do Convento de São Francisco, no alto da colina.

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Cidade de FredericaFrans Post, 1638
Atribuem-se também a Post outros quadros que retratam paisagens ribeirinhas das margens do Sanhauá-Paraíba. Um deles seria a obra denominada Cidade Frederica na Paraíba, datada, possivelmente, de 1638 e que em 10 de janeiro de 1937, teria sido leiloado pela famosa Galeria Sotheby’s - Sede de Nova York - e caído em mãos de colecionador anônimo.

De tanto procurar por obras do artista, tomei conhecimento de que um colega professor da UFPB, paraibano de raízes alemãs, tem em sua casa, a réplica de um dos quadros de Post. Minha insistência se dá por pura curiosidade histórica e porque cultuo a crença de que ter elementos pictóricos como referência é prova documental de tanto valor quanto qualquer outra.

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Bairros de João Pessoa ▪ Fonte: AndersonPB / Wikipedia
Logo que a deterioração do Varadouro emergiu como objeto de estudos no Grupo Mirabeau Dias de Estudos e Debates, do qual faço parte, por minha identidade profissional com a geografia urbana e o planejamento, de plano, me voluntariei para apresentar trabalho sobre o tema. Movia-me o interesse que nutro pelo estudo de tal questão e sua expressão em texto, desafio ao qual agora estou respondendo, com a destinação deste conteúdo à publicação. Seu escopo seria o recorte do assunto e seu tratamento pela ótica da questão sócio-espacial urbana, em face da complexidade dos fatos e fenômenos que produziram o cenário de degradação ali verificado.

No entanto, à medida que comecei a mergulhar nas referências bibliográficas e fontes relativas ao assunto (mapas, cartas geográficas, plantas urbanas, planos de desenvolvimento urbano, livros, monografias de cursos de graduação, dissertações de mestrado, teses de doutorado, relatórios técnicos, filmes, vídeos, iconografia e pinturas), me deparei com um Varadouro subordinado a complexidades e eventos a demandar estudos abrangentes, inter e multidisciplinares, com vistas à compreensão desse fenômeno de decadência, cujas raízes se fincam em uma gama de fatos relacionados à sua história e trajetória, do período colonial aos dias atuais. A deterioração do Varadouro tem causas profundas que vão além dos clichês e cuja elucidação demanda aprofundamento.

Prédio histórico em ruínas, na Rua Rosário di Lorenzo, Varadouro, JP-PB
O bairro que ao longo do tempo foi portuário, rodoviário, ferroviário, zona de comércio e serviços, zona residencial e de lazer, com atividades bem mais intensas do que as que ainda resistem, foi perdendo vitalidade e como que se “desconectando” da “cidade total” e se tornando espaço semiabandonado. Outros locais da cidade foram se desenvolvendo e atraindo para si funções e atividades que aí se restringiam ao Varadouro.

São de perplexidade e lamentação, as impressões que se colhe ao contato com este maltratado recanto que foi o berço da cidade. Em face disto, o sentimento que logo emerge é o da vontade de ver se concretizarem ali ações e medidas reabilitadoras definitivas, decorrentes de políticas urbanas sustentáveis que devolvam à cidade um espaço revitalizado e operando com vigor, por substituição de atividades.

Edificação histórica na Rua da Areia, Varadouro, JP-PB
Por mais que se anseie e se procure, não se encontram mais do que propostas de planos ou medidas nunca aplicados à totalidade do bairro e também não se tem conhecimento de qualquer ação efetiva com vistas à redefinição de uma nova vocação para o bairro que, a pouco e pouco, foi se esvaziando em razão de causas... econômicas, políticas, administrativas, sociais e urbanas que atuando ao mesmo tempo, trouxeram reflexos desastrosos às atividades e à vida humana ali presentes.

A cidade conta, atualmente, com de cerca de 70 bairros oficiais, o que produziu uma nova dinâmica econômico-espacial. Diversos deles apresentam atividades econômicas robustas e dentre estes, alguns vêm construindo vida própria e emergindo como polos que, sobrepujando outros, ostentam qualidade e poder para esvaziar cada vez mais o Varadouro, pela migração de suas razões sociais para lugares mais competitivos.

Grosso modo, na cidade de João Pessoa, as atividades produtivas estão espacialmente assim distribuídas e formatando, ex vi, a seguinte categorização: 03 polos-líderes: Centro, Avenida Epitácio Pessoa Tambaú-Bessa. 03 polos intermediários: Torre-Beira Rio, Mangabeira e Cruz das Armas. 05 polos secundários: Bancários, Tancredo Neves-Mandacaru, Gurjão-Cristo Redentor. 01 polo terciário: Valentina de Figueiredo-Perimetral Sul. Faz 70 anos que o Porto do Sanhauá foi desativado. Em grau de vontade política, este lapso de tempo representa razoável prazo de espera por medidas reabilitadoras.
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Prédios abandonados no bairro do Varadouro ▪ Alphabet
O que se viu, no entanto, foi o esvaziamento contínuo do bairro que em modo continuo vem, há décadas, o abandono em que caiu parte relevante do seu patrimônio arquitetônico, cultural e afetivo, formado pelo casario residencial, antigas instalações industriais, fabris, comerciais e administrativas.

Desta forma, nestes últimos 87 anos, intervenções compensatórias de vulto e que pudessem repercutir no processo de revitalização do bairro não ocorreram. Sem isso, o bairro não pode manter o papel anterior, nem continuar competitivo, ou atrativo o suficiente para concorrer em pé de igualdade com outros bairros, cuja evolução os vem transformando em espaços urbanos detentores de maior concentração de população, novos negócios e como palco para outras atrações.

A manifestação a que me referi de início, teria por objetivo ordenar pontos de vista e sugestões em torno da apropriação do objeto de minhas observações, de modo a que seu foco se centrasse na produção de referências elaboradas com olhar mais alargado. Algo fora do convencional e não tão acadêmico ou técnico, de maneira que seu resultado fosse capaz de indicar rumos e alimentar objetivos específicos, como por exemplo, a roteirização de um documentário ou até, quem sabe, o despertar das instâncias de governança implicadas.

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Edifício histórico abandonado na Rua Rosário di Lorenzo, na área do cais do Varadouro, João Pessoa, Paraíba

De pronto, o simples contato com essa porção degradada da cidade já provoca sensações e reações em quem a observa criticamente e por isso, impõe-se a necessidade de bem definir os elementos que se quer sob lupa. Sem dúvida, uma primeira visão do Varadouro já remete a declínio de atividades econômicas, deterioração socioespacial, abandono, incapacidade de solução por carência de recursos, ausência de decisões políticas e planejamento estratégico de longo prazo. E resumo aqui um ponto de vista que julgo importante para quem resolve pensar o bairro: tristeza, perplexidade e lamento se misturam “aux couleurs sombres” desse recanto da cidade.

Assim, em face do quadro ali encontrado e da ausência de solução, o planejador, em momento de dúvida, põe-se a se questionar: - o melhor não seria deixar fluírem as coisas e passar a viver de recordações, imagens e referências em torno do bairro do passado? – Ou embalar-se em outros sonhos sobre como poderia ser essa parte agonizante da cidade no contexto da cidade atual, se umas poucas medidas tivessem sido adotadas, em hora adequada, dentro de uma visão de economia urbana, planejamento e governança de cidades?

Steffen Lemmerzahl
[...Como a de tantos outros desta cidade, a vontade de ver essa área urbana reabilitada é tamanha que, noite dessas, até sonhei que se havia construído ali imensa torre, dessas que se iconizam em cidades do mundo inteiro e não se para de reproduzi-las, países a fora.

Sobre vasta plataforma de três sólidos pavimentos, havia na base de tal torre, auditórios, salas de cinema, salas de projeção, salas de reunião, largos corredores, pequenos museus temáticos, biblioteca virtual, restaurantes e lanchonetes, magazines, salas de jogos eletrônicos, e no solarium, potentes lunetas de onde se viam em 360 graus, o infinito das nossas paisagens verdes, o verde-azul dos nossos mares, os diferentes recortes de uma cidade em crescimento, por do sol e as estrelas.

No meu sonho, o Centro Histórico começava a se integrar a essa cidade em expansão, por eixos de circulação formados por avenidas revitalizadas e uma recém-construída. No eixo 01: a Avenida Sanhauá, em direção à Via Oeste-Alto do Mateus; no eixo 02: a Avenida Sanhauá até sua passagem sobre o trilho do trem, e que continuada como Avenida do Futuro, segue em paralelo à via férrea, ligando o Varadouro ao Jacaré, BR 230 e cidade de Cabedelo; no eixo 03: Rua Padre Azevedo, Avenida Guedes Pereira, Rua Padre Meira, Lagoa dos Irerês; No eixo 04: Praça Napoleão Laureano, Rua Barão de Triunfo, Rua Guedes Pereira; No eixo 05: Avenida Gouveia da Nóbrega, Rua Odon Bezerra, e adjacências do Alto Roger;
David Vives
no eixo 06: Avenida João Machado, direção Pedro II e Trincheiras, Jaguaribe, Cruz das Armas.

Em frente à torre, barcos brancos, de diferentes bandeiras internacionais, adernando ao largo de pequena marina; mais distante, o terminal de confortável sistema de VLT-Veículo Leve sobre Trilhos, de 3 e 4 vagões, transportavam pequenas multidões que se punham a redescobrir o Varadouro. Vi muita gente chegando ou saindo do trabalho. Vi pegadas de um melhor ordenamento territorial que já se executara por ali. Constatei a satisfação e a racionalidade com que as coisas estavam sendo conduzidas. Não se havia expulsado moradores, casas não tinham sido derrubadas, a gente do bairro estava recebendo qualificação e sendo integrada às novas atividades ali nascentes.

Era apenas sonho fugaz. Mas, pude perceber que a vida voltava ao bairro. Gente de todas as partes da cidade, visitantes de diferentes lugares da região, turistas vindos, sabe-se lá de onde, se rendiam ao Varadouro do meu sonho.

Era começo de madrugada e como em Bayou, na Luisiana, os bares, restaurantes e cabarés do Varadouro ainda estavam abertos. Não sei por qual razão, mas se ouvia ali a romântica Blue Bayou, de Roy Orbison (1961), eternizada por Michelle Mathieu, dentre outros. Boêmios, cantores, poetas e garçons, como no Varadouro antigo, ainda estavam ali postados a espalhar sorrisos, alegria e sons pelo lugar. Barcos roncavam seus apitos graves em noite morna de verão, alguns deles, prontos para zarpar em busca de outros mundos. No outro dia, ainda tocado pelo sonho, tive a pachorra de ir conferir se algo de diferente havia acontecido... ].

De volta ao mundo real, logo entendi que o certo seria uma segunda visita a toda a área, para de lá extrair informações com vistas à formação de um corpo de ideias que, de forma holística, me expusesse à compreensão do Varadouro que resolvi estudar e traduzir numa sequência de três artigos.

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O bairro do Varadouro, visto a partir do Rio Sanhauá ▪ Fonte: PB Criativa
Posto isto, permanecem ainda na retina as últimas imagens do meu sonho. Do alto da minha torre, pude contemplar imagens do cais do Sanhauá de outrora, das ruas e ruelas primevas que subjazem às denominações atuais, das antigas ladeiras descalças que alcançavam os Conventos e Igrejas na Cidade Alta, das fontes naturais que abasteciam os primeiros habitantes da cidade, dos largos portões de antigos armazéns de recebimento e saída de produtos mercadorias, do trem de ferro que punha a hinterlândia canavieira e algodoeira em contato com a capital, de bondes que subindo a Guedes Pereira chegavam a vistosas casas e sobrados que se assentavam em derredor da Lagoa dos Irerês, de casebres de adobe e choupanas que aqui e acolá se viam, dos caminhos antigos que como longos fios brancos cortavam o verde em busca de Mandacaru, Cruz do Peixe, Torre, Macacos, Jaguaribe, Cruz das Armas e Oitizeiro que, desde as décadas finais do século XIX, já desenhavam os rumos que tomaria a expansão da cidade, de algum traço das culturas espanhola e holandesa perdido na paisagem maltratada do bairro e presentes na formação da cidade.

Este texto, um tanto exploratório e um tanto retórico, tem por objetivo a introdução do assunto. E finalizando, é sempre bom lembrar que sonhar é preciso. E quando se trata de memória urbana e preservação cultural, o melhor mesmo é sonhar em dobro.

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  1. Parabéns, Modesto por mais este excelente texto.
    Continue!

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  2. Escrevi e escrevi...
    E se perdeu....
    Mencionei o qto , além da vontade política, o afeto pode determinar a manutenção de espaços que geraram vidas, sonhos, motivações.
    Seu sonho pode ser sonhado junto, falta buscar o par....
    Qdo cheguei na Paraíba e conheci Varadouro, quis morar lá, meus amigos lançaram tantos argumentos que desisti.... Porém aluguei uma diminuta casa no Porto do Capim e lá atuei por três anos em educação e saúde, resgatando as traduções...
    Agradeço a sua iniciativa de compartilhar suas ideias, pensamentos e sonhos.sonhos. Abraços

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