O eu-lírico de Augusto dos Anjos, em um dos seus poemas mais complexos, “Os Doentes”, percebe o milagre da vida a partir da condensação...

''A vida vem do éter que se condensa''

evolucao ambiente cosmo richard dawkins
O eu-lírico de Augusto dos Anjos, em um dos seus poemas mais complexos, “Os Doentes”, percebe o milagre da vida a partir da condensação do éter. O que o maravilha e o extasia, contudo, é o duplo milagre de a vida ser uma vida que pensa (Parte V, estrofe 59, versos 231-4):

A vida vem do éter que se condensa, Mas o que mais no Cosmos me entusiasma É a esfera microscópica do plasma Fazer a luz do cérebro que pensa.

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Nasa
Além de se ver aí uma concepção de Ernst Haeckel, com relação ao éter – “éter universal e móvel, divindade criadora, a massa inerte e pesada, matéria da criação” (O monismo, 1905, p. 24) –, vemos também o plasma, como elemento não só imprescindível para a vida, mas sobretudo para a formação do pensamento. Como seres humanos, cabe-nos ir além, utilizando o raciocínio, para a nossa evolução como espécie. Foi para isto que a matéria inorgânica, se organizando no cosmos, a partir do plasma fervente produzido pela nossa principal estrela, o Sol, contribuiu para o surgimento da matéria orgânica, assim também entendido por Augusto dos Anjos, ainda consoante as ideias de Haeckel, conforme vemos em “As Cismas do Destino” (Parte II, estrofe 42, versos 165-8):

Nessa época que os sábios não ensinam, A pedra dura, os montes argilosos Criariam feixes de cordões nervosos E o neuroplasma dos que raciocinam!

A introdução acima foi motivada pela série Enigmas do universo (Our Universe, Netflix, EUA, direção de Naomi Austin, Stephen Cooter e Alice Jones, 2021-2022), série de uma beleza que encanta, tratando da criação do universo, desde o big bang, há 13,8 bilhões de anos, até o surgimento da vida no nosso planeta e como ela se desenvolveu. É uma jornada épica, narrada por Morgan Freeman,
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Gio's Studio
sem perder o contato com o mais puro estado poético, com a perspectiva voltada para seis animais – uma fêmea guepardo, Wa Chini, no Serengeti, Tanzânia, na luta para alimentar suas duas crias; uma chimpanzé fêmea, grávida, Celeste, em Loango, Gabão, premida pelo relógio biológico, para dar à luz seu único bebê; uma fêmea ursa, Luna, no Alaska, em busca de uma caverna para hibernar e parir suas duas crias; uma tartaruguinha, Estela, em sua jornada para voltar à Grande Barreira de Corais da Austrália, onde nasceu, e pôr seus ovos; uma matrona elefanta, Pula, e sua manada, de que se destacam os primos bebês Bosigo e Metsi, na peregrinação pelo delta do Okavango, Botsuana, África, em busca de água, e Rocky e Paloma, um casal de pinguins, na Geórgia do Sul, Antártida, atraídos por uma força maior, para dar continuidade à espécie. Todos ligados ao universo pelos mesmos elementos básicos: hidrogênio, hélio, carbono, oxigênio, silício, ferro, tendo a água como a argamassa inicial, estimulada pelos fótons solares, que tudo alimenta, e unidos pela gravidade, a força que molda o cosmos (os cientistas de plantão me perdoem por não ter o conhecimento devido na área, tendo, portanto, que repetir alguns momentos da série, ainda que tenha buscado alguma confirmação em Ernst Haeckel, Stephen Hawkins e Richard Dawkins).


O big bang permitiu a expansão de uma poeira quente e densa, de onde vieram os átomos e a energia do universo, cujo resfriamento produziu a condensação dos primeiros átomos na névoa – “a vida se condensa no éter” –, átomos de hidrogênio, primeiro dos elementos do universo. Atraído pela gravidade do big bang, o gás do hidrogênio criou as estrelas, as primeiras luzes na escuridão do universo. Na sequência, as altas temperaturas e a alta pressão criaram os elementos. A aglutinação de átomos de hidrogênio formou o hélio, num processo de fusão nuclear, liberando energia, cuja reação em cadeia tende a produzir elementos cada vez mais pesados. Três átomos de hélio em combinação formam o carbono, o andaime da vida; carbono e hélio produzem o oxigênio; a combinação de átomos de oxigênio forma o fósforo, depois vêm o silício e o cálcio. De todos eles, oriundos do coração das estrelas, se forma a vida.

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Nasa
A formação das galáxias se deu há 10 bilhões de anos; o Sol, há quase 5 bilhões; a Terra, há pouco mais de 4 bilhões, no amadurecimento do universo, a partir da formação das galáxias, de acordo com Stephen Hawking (Uma breve história do tempo; tradução de Cássio de Arantes Leite. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015, p. 153):

Stephen Hawking
“Nosso próprio Sol contém cerca de 2% desses elementos mais pesados pois é uma estrela de segunda ou terceira geração, formada há cerca de 5 bilhões de anos a partir de uma nuvem de gás em rotação contendo os restos de supernovas anteriores. A maior parte do gás nessa nuvem entrou na formação do Sol ou foi expelida, mas uma pequena quantidade dos elementos mais pesados se agrupou para formar os corpos que hoje orbitam o Sol na condição de planetas, como a Terra.”

A água veio do universo em cristais de gelos aglomerados em rochas lançadas em direção à Terra, ajudando no resfriamento de sua crosta. Parte da água vinda com os asteroides ficou presa no interior da Terra, sendo liberada, em seguida, pelos vulcões, em forma de vapor. Com a liberação das moléculas de água, formaram-se as primeiras nuvens e as primeiras gotas, transformando-se ao longo dos séculos, nos lagos, rios, mares e oceanos, de onde surgem as células originárias da vida (“todos os encontros ocorrem no mar”, Dawkins, 2009, p. 27).

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Michael Dam
Para quem não acredita nessa conexão cósmica, a odisseia da tartaruguinha Estela é um exemplo inconteste. Há dois milhões e meio de anos, no núcleo de uma estrela gigante, alimentada por fusão nuclear, cuja energia liberada criava elementos, cada vez mais pesados, houve um aquecimento além da conta que deu origem ao ferro, proporcionando uma transformação inusitada, pelo fato de o ferro não liberar energia, mas consumi-la. À medida que mais ferro se produzia, ele se espalhava pelo núcleo, com o calor da estrela servindo-lhe de alimento, ao mesmo tempo que a sufocava. Condenada, a estrela explodiu e a supernova lançou poeira rica em ferro pela galáxia, que chegou ao nosso planeta, como chegam diariamente 100 toneladas de poeira estelar na nossa atmosfera. É o ferro que permite a orientação das tartarugas. No dizer de Richard Dawkins “sem estrelas não existiriam átomos mais pesados que o lítio na tabela periódica – e uma química só com três elementos é pobre para sustentar a vida” (A grande história da evolução; tradução de Laura Teixeira Motta, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 18-9).

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Stephen Leonardi
Acredita-se que no cérebro das tartarugas existam células especializadas contendo cristais de magnetita, mineral rico em ferro alinhado ao campo magnético da terra, funcionando como uma bússola, levando-a ao lugar onde nasceu, para ali depositar seus ovos. É o encontro com a impressão digital magnética, criada pelo campo magnético da Terra, gerado no seu núcleo, dando a cada lugar uma assinatura magnética única. É o ferro, portanto, que a conecta com o núcleo do planeta e com o campo magnético, ferro só produzido com a morte de uma estrela. Trata-se do mesmo campo magnético que protege a Terra contra os causticantes ventos solares que, varando o espaço, extinguiram a água de Marte.

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Paul Carroll
Por outro lado, queremos poesia maior do que a força da gravidade que leva o casal de pinguins, Rocky e Paloma, a se atraírem, se diferenciarem entre tantos iguais da sua espécie, dispersos ao longo da costa na Geórgia do Sul, ilha do Ártico? É exatamente por isso que Stephen Hawking assevera ser “a gravidade que determina a evolução do nosso universo” e que “molda em grande escala” a sua “estrutura” (op. cit., p. 105 e 227).

O universo está inteiramente conectado, do mais ínfimo seixo à mais poderosa das galáxias; da mais rasteira das gramíneas ao altivo ser humano, que se crê o cume da criação, dando-nos um testemunho da força da vida, em sucessivos e intermináveis ciclos de renascimentos infinitos, prova de nossa imortalidade. A cada estrela que "morre", nascem milhões de outras e sua poeira se propagando pelo cosmos produz novos planetas e novas luas, asteroides e fragmentos que chegam aos planetas mais antigos, ajudando a criar outras vidas e a manter as existentes, desde as mais remotas origens. Como diz Richard Dawkins (DAWKINS, 2009, p. 25):

“No pé em que estão as coisas, parece que podemos situar as origens de todas as formas de vida conhecidas em um único ancestral que viveu há mais de três bilhões de anos”
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Roberto Zuniga
Não importa o lugar em que estamos ou a forma que assumimos – guepardo, ursa, chimpanzé, tartaruga, elefanta ou pinguins –, “todos os seres vivos são primos” (DAWKINS, 2009, p. 31) e todos, nos confins gelados das Américas (Ártico e Antártico), nas quentes savanas ou nas selvas da África, no mundo marinho dos corais, necessitamos da energia que vem do sol, das estações que estabelecem o ciclo circadiano, do tempo necessário para a procriação, da água para sobreviver, do prumo magnético para retornar às origens, da gravidade para nos atrair. E isto é, simplesmente, a vida. A vida se perpetuando e se transformando e se renovando e sempre existindo, sendo o maior milagre jamais presenciado, que leva o poeta, numa visão haeckeliana panteísta, à reflexão da unidade do cosmos (“Gemidos de Arte”, Parte III, estrofe 34, versos 133-136):

Augusto dos Anjos
“Fico a pensar no Espírito disperso Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança, Como um anel enorme de aliança, Une todas as coisas do Universo!”

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  1. Um texto para ser guardado, relido é refletido. Uma brilhante exposição colocando Augusto , nosso poeta, como um pensador e conhecedor dos mistérios cósmicos. Parabéns, Milton. Deixou-me sem fôlego!

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  2. Ler poemas de Augusto dos Anjos nos dá asas para ir além das nossas fronteiras (limitadas). A interseção dos seus encantos com as empíricas especulações da existência, romantiza a ciência em desvendar os segredos deste infinito e enigmático universo.

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  3. Ângela Bezerra de Castro3/12/22 10:12

    Mil é mesmo um fenômeno. Fico sem palavras para expressar minha admiração por tamanha capacidade de leitura que implica uma visão enciclopédica. Nesse devotamento a Augusto, ele já domina o infinito. Um infinito que se multiplica, a cada nova leitura.

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  4. Obrigado, Ângela! Augusto nos inspira a pensar.

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  5. Raniere Figueiredo5/12/22 05:00

    Excelente texto que comprova quão inteligente e angelical era o nosso Augusto. Parabéns Prof. Milton Marques.

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