O jovem Ambrósio Richshoffer era, pelas suas próprias palavras, filho de um “burguês e negociante notável” de Estrasburgo, e deixara a cidade onde nascera motivado pelo espírito de aventura. Em 1629, depois de passar por vários lugares, chegou à Amsterdã onde se alistou como soldado em uma armada que estava sendo preparada pela Companhia das Índias Ocidentais – a W.I.C., com a aprovação e o apoio das Províncias Unidas dos Países Baixos, com o objetivo de atacar Pernambuco.
Richshoffer deixou um relato em forma de diário dos dois anos nos quais serviu na expedição holandesa ao Brasil. O soldado Richshoffer era um simples subalterno na armada e a sua narrativa, conforme anotou o historiador Capistrano de Abreu, “ignora os planos dos chefes”, mas, em compensação, descreve episódios da viagem e dos “primeiros tempos passados em terra” e “o viver quotidiano da soldadesca”, que “completam e retificam” obras portuguesas sobre o período.
Depois de uma longa viagem de oito meses, no dia 15 de fevereiro de 1630, chegava a Pernambuco a armada neerlandesa que era formada por 67 embarcações e transportava 7 mil homens. Sobre aquele dia Richshoffer escreveu:
“Acampamos durante a noite junto à praia [...] Estando de sentinela esta noite [...] completei o meu 18º aniversário natalício”.
A conquista de Olinda e do Recife se deu sem grande resistência. Da mesma forma que ocorrera, cinco anos antes, em Salvador, houve o recuo das forças locais para o interior próximo à costa. Para o historiador Evaldo Cabral de Mello, a reação dos colonos que:
“se chamou na época de ‘guerra lenta’ visava à contenção do inimigo, assegurando o controle do interior, em especial das áreas açucareiras, e reduzindo os neerlandeses à área entre Olinda e o Recife, à espera de que a Coroa enviasse a armada restauradora ou de que a W.I.C. desistisse da empreitada, por não poder, na sua condição de empresa comercial, arcar indefinidamente com os custos da conquista”
Como a Coroa espanhola estava em dificuldades que a impossibilitava de socorrer a região com uma armada que restaurasse o seu domínio na área, como fizera cinco anos antes na Bahia, a defesa local ficou restrita às guerrilhas que fustigavam as incursões para o interior dos batavos, que ficavam dependentes apenas do suprimento externo para a sua alimentação, como relatou Ambrósio Richshoffer:
“A 14 foram mortos três homens da nossa companhia que tinham ido ao mato buscar frutas [...] As mais das vezes as rações de pão ou provisões distribuídas para oito dias mal chegam para dois, sendo até devorados cães, gatos e ratos. Assim achamo-nos na alternativa de ou expulsarmos o inimigo da sua vantajosa posição ou morrermos de fome”
Caminhava-se para o segundo ano da presença dos holandeses em Pernambuco e a situação permanecia inalterada. Além do mais, como os flamengos tinham grande dificuldade em manter a defesa de Olinda resolveram evacuar a população da cidade e incendiá-la. Na narrativa de Diogo Lopes Santiago, que era um “Mestre de Latim” português que residia na ocasião em Pernambuco:
“Vendo e experimentando os holandeses que os portugueses os acometiam muitas vezes, principalmente pela vila de Olinda, por ser aberta por muitas partes e incapaz de defesa, matando-lhe muita gente, e que não eram senhores de poder ir dela para o Recife, ou do Recife para a vila sem manifesto risco e urgente dano, determinaram de a deixar [...] puseram por obra seu intento em dia de Santa Catarina, 25 de novembro de 1631, pondo-lhe fogo por todas as partes, que foi um miserando espetáculo. Assim ardeu a infeliz vila de Olinda, tão afamada por sua riquezas e nobres edifícios, arderam seus templos tão famosos, e casas que custaram tantos mil cruzados em se fazerem, sem ter lástima o desumano holandês de pôr fogo a tão grandiosa vila”
Por aquela época, os neerlandeses mudaram a sua estratégia da ocupação do território. Ao invés do avanço pelo interior, intencionaram se fixar nas praças-fortes litorâneas para impedir a comunicação dos colonos com Portugal e a Espanha. Inicialmente, construíram uma fortificação em Itamaracá e, em seguida, voltaram as suas vistas para a Paraíba. No final de novembro de 1631, três dias depois do incêndio de Olinda, uma armada batava foi aprestada com destino ao litoral paraibano, conforme o relato de Ambrósio Richshoffer, que fazia parte da expedição:
“A 28 embarcamos com 13 companhias [...] A 2 fizemos de vela com 19 navios, chegando em seguida, a 5, diante da Paraíba, onde ancoramos, e descendo sem demora para as chalupas desembarcamos na praia a meio tiro de canhão da trincheira inimiga. Os espanhóis, que estavam atrás de um parapeito, nos receberam com uma salva, ferindo muitos e matando a diversos nos navios”
Os acontecimentos da investida batava à Paraíba, em dezembro de 1631, tiveram, também, um narrador pelo lado dos ibéricos, que presenciou os episódios e deixou um escrito sobre eles, que foi o religioso beneditino Frei Paulo do Rosário, que era, naquele momento, o Comissário Provincial da sua Ordem no Brasil e que tinha sede no Mosteiro de São Bento na cidade Filipeia de Nossa Senhora das Neves. Frei Paulo escreveu a “Relação Breve e Verdadeira da Memoravel victoria, que ouve o Capitão mór da Capitania da Paraíba Antonio de Albuquerque, dos Rebeldes de Olanda, que são vinte náos de guerra, & vinte & sete lanchas: pretenderão occupar esta praça de sua Magestade, trazendo nellas pera o effeito dous mil homens de guerra escolhidos, a fora gente do mar”, obra que foi publicada em Lisboa no ano seguinte ao do primeiro ataque dos flamengos à Paraíba.
Na crônica de Frei Paulo se toma conhecimento das providências que haviam sido tomadas pelo Capitão-Mor da Paraíba Antônio de Albuquerque para preparar a Capitania para rechaçar os ataques dos holandeses, dentre as quais estavam o aumento da artilharia do Forte de Cabedelo e a construção de um novo forte. Frei Paulo relata que cerca de dois meses e meio antes da ofensiva batava haviam chegado reforços de Portugal, dentre eles uma companhia de soldados espanhóis que eram comandados por um português que, segundo o frade beneditino, “sobejava no ânimo, o que lhe faltava no corpo, que neste era anano”.
As forças locais se concentraram no Forte de Cabedelo, que ficava próximo ao lugar do desembarque dos holandeses. Conforme a narrativa de Frei Paulo do Rosário: “se ajuntou toda gente que há na Capitania no forte de Cabedelo, deixando primeiro o Capitão-mor o varadouro desta cidade bem provido de artilharia, e munições, como também de soldados, onde há dois redutos”. Durante os primeiros três dias após a chegada dos holandeses, os combates entre os neerlandeses e as forças reunidas na Capitania foram de tal forma acirrados que o soldado Richshoffer escreveu que “os canos dos mosquetes estavam tão aquecidos pelo sol e pelo constante fogo que quase era impossível carregá-los mais”.
Frei Paulo do Rosário relata que, durante a batalha, houve grande escassez de pólvora e munições, carência que foi suprida por uma providencial chegada em Mamanguape de uma Caravela com provisões. Desta narrativa, se sobressai a ação diligente de um dos nomes de maior destaque nos primeiros tempos da colonização da Paraíba:
“e a pressa, com que por ordem do Capitão-mor acudiu Duarte Gomes da Silveira a descarregar estas munições sendo que é homem velho de setenta e tantos anos porque em vinte e quatro horas estavam já trinta barras de pólvora postas no nosso quartel. Não são estes os primeiros serviços que o nosso bom velho fez em serviço de Sua Majestade antes é tão velho nos serviços como é velho nos anos, nos quais nem fazenda, nem pessoa poupou nunca pelo servir”.
As lutas continuaram e as perdas de cada lado aumentavam a cada dia. O soldado Richshoffer descreveu no seu diário as baixas batavas: “No espaço destes primeiros cinco dias cada companhia teve, entre mortos e feridos, 30 e mais homens, subindo o total da nossa perda a mais de 500 soldados”. Entre as perdas portuguesas, estava a do capitão “anano”, a quem, segundo Frei Paulo, “a natureza pagou em dobro, no ânimo e valor, o que lhe havia furtado do corpo”. Alguns capitães castelhanos morreram em um dos ataques dos holandeses, que foi assim descrito pelo frade beneditino:
“nos custou o assalto com trinta e cinco pessoas, e quinze Índios, afora a gente que saiu ferida, da qual a mais dela nos morre, e foram de oitenta pessoas para cima [...] Entre as pessoas feridas de que depois morreram muitos, foi um de grande porte, que nos magoou a todos, o qual foi o Reverendo Padre Frei Manuel da Piedade da Custódia Franciscana [...] A este Padre feriram os Hereges [...] com grande inumanidade, que como são inimigos capitais de nossa Igreja Romana, acrescente-se lhe o ódio contra os que são mais da Igreja”
Ao chegar ao sexto dia de lutas, Ambrósio Richshoffer anotou no seu diário: “A 10 tivemos de ambos os lados tanto que fazer com enterrar os mortos que quase suspenderam-se o canhoneio e escaramuças”. Conscientes de que “nada de importância conseguiríamos neste sítio”, anotou Richshoffer, os batavos decidiram deixar a Paraíba no final daquele dia. Na narrativa de Frei Paulo do Rosário:
“Grande foi a nossa perda [...] porém a do inimigo foi de muito maior porte, que se bem foi de muita gente, também foi de honra e valor na retirada que fizeram que foi com tal desacordo, e tão ocupados de medo com a deliberada resolução com que os nossos lhe rebateram o infernal ímpeto que traziam, que segundo iam apressados pareciam levar asas nos pés”
O soldado Ambrósio Richshoffer registrou no seu diário que a retirada dos batavos para os navios foi feita, furtivamente, durante a noite:
“Ao amanhecer do dia seguinte, o inimigo começou a fazer fogo [...] como nós lhe respondêssemos dos navios e não da bateria, alguns temerários apresentaram-se diante das nossas obras e atiraram para dentro delas. Não vendo sentinela alguma, transpuseram-nas e vieram aos magotes ao acampamento que incendiaram. Puseram-se então a gritar com todas as forças: ⏤ Flaminco Cornudo! ao que nós respondíamos: ⏤ Spaniola Cornudo! Assim nos despedimos amavelmente uns dos outros”.
Restou, assim, frustrada, a primeira tentativa dos holandeses em conquistar a Paraíba.