O cientista e evolucionista alemão Ernst Haeckel, no livro Os enigmas do universo (tradução de Camille Bos. Paris: Librairie C. Reinwald/Schleicher Frères Éditeurs, 1902), que citaremos neste ensaio, em tradução nossa da língua francesa, procura nos dar uma rápida visão do olhar científico da sua época, a respeito de como a Terra, “uma parte infinitamente pequena do Cosmo” (Capítulo XIII – História do desenvolvimento do Universo, p. 285), teria se formado.
Haeckel aponta a importância inicial para a distinção de duas partes essenciais ao estudo da história do nosso planeta – a geogenia anorgânica e a orgânica (p. 286-7).
A história orgânica começa a partir “da primeira aparição de seres vivos, na superfície do globo”, sendo a história anorgânica bem mais antiga, semelhante à dos demais planetas do sistema solar, os quais se destacando do equador do Sol, passaram a orbitar em seu redor, “sob a forma de anéis nebulosos que se condensaram gradualmente em mundos independentes” (p. 287). A terra, inicialmente em estado de ignição, surge a partir do resfriamento progressivo dessas massas gasosas, produzindo a fina camada sobre a qual vivemos. Continua, então, Haeckel a explicar o que aconteceu, de acordo com a ciência de sua época (p. 287):
“Foi somente depois que na superfície a temperatura baixou até um certo grau, que a primeira gota d’água líquida pôde formar-se no meio do invólucro vaporoso que a rodeava, era a condição mais importante para a aparição da vida orgânica. Bastantes milhões de anos se escoaram – em todo o caso mais de cem – desde que este importante processo de formação da água se produziu, conduzindo-nos destarte à terceira parte da cosmogenia, à biogenia.”
⏤ p. 287 ⏤
Em O monismo, livro publicado em 1892, a partir de uma conferência feita na comemoração do Jubileu de 75 anos da Sociedade dos Naturalistas, em Altenbourg, Alemanha, nesse mesmo ano, Haeckel já nos apresenta a concepção do orgânico proveniente do inorgânico, resultado de uma evolução relativamente tardia, após o resfriamento da Terra, criando as condições para o surgimento da vida. Essa unidade e suas relações genéticas, no dizer de Haeckel, consistem em “um princípio fundamental do monismo” (aqui utilizamos a edição francesa de 1905, Le monisme, em tradução de G. Vacher de Lapouge, p. 63).
Vejamos como Euclides da Cunha emula, em passagem antológica da primeira parte de Os sertões, “A Terra”, a citação de Haeckel apresentada acima (edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, 2ª. ed. São Paulo: Ubu Editora/Edições Sesc São Paulo, 2019, p. 48):
“Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes; para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras...”
⏤ p. 48 ⏤
É muito provável que Euclides da Cunha tenha tido acesso a Os enigmas do universo, publicado em 1899, na Alemanha, e em 1902, na França, em tradução de Camille Bos. Se teve ou não teve acesso, pois nesse intervalo Euclides escrevia Os sertões, é fato de somenos importância. O que importa, realmente, é que o pensamento dos dois excepcionais escritores é convergente, embora aos olhos de uma leitura rápida pareça não existir relação intrínseca entre os dois textos.
Em ambos os casos, vemos escritores preocupados com a vida. Um mergulha nos estudos científicos, para a decifração dos mistérios da criação, buscando compreender como a vida se formou; o outro extasia-se com a persistência da vida em renovar-se, apesar do ambiente inóspito e adverso. Haeckel, convicto de que a vida orgânica começa com o plasma vivo, apresenta-nos uma teoria cosmogenética, desde a explosão e a separação das massas nebulosas do Sol à primeira formação de uma fina crosta na superfície dos planetas rochosos, como é o caso da Terra, permitindo que, a partir da constituição de uma síntese de combinações inorgânicas, eu ele considera simples – água, ácido carbônico e amoníaco ou ácido azótico (Os enigmas do universo, Capítulo XV – Deus e o Mundo –, p. 323 ) –, recebendo a incidência da luz do sol, se desse o momento propício para o surgimento da vida, da qual o plasma é elemento essencial (Capítulo XX – Solução dos enigmas do Universo, p. 423):
“Torna-se, por conseguinte, possível ao ácido carbônico, aqui [noutros planetas] como na terra, formar com os outros elementos combinações muito complexas e entre estes compostos azotados pode se desenvolver o plasma, essa maravilhosa substância viva, que nós temos reconhecido concentrar em si todas as propriedades da vida orgânica.”
⏤ p. 423 ⏤
Euclides da Cunha, por sua vez, maravilhado com o ressurgir da vida, incubada durante o adusto período das secas sertanejas, registra um processo semelhante ao do cientista alemão, ao procurar mostrar a alternância dos períodos de seca e de inverno, no sertão, com a vida se recolhendo em latência, para se renovar a cada invernada. Euclides se depara com o desvendamento dessa maravilha, descrevendo magistralmente como a gota d’água, persistente, caindo sobre a crosta quente e ressequida, depois de sucessivas tentativas, que parecem vãs, mas necessárias ao resfriamento do solo, transforma-se em cheia, por causa das fortes chuvas. O resultado “é uma mutação de apoteose”, de que se destacam os umbuzeiros “dominando a revivescência geral”, na sua qualidade de “árvore sagrada do sertão”, “a nota mais feliz do cenário deslumbrante”, que faz do sertão “um paraíso” (“A Terra”, Capítulo IV, p. 57-58.
Como se pode perceber, as descrições de um e de outro diferem apenas no sentido macro e no sentido micro, mas se encontram com o mesmo propósito, de mostrar como a vida, seja no momento de sua criação, seja em estado de latência, à espera de revivescer, só quer encontrar o meio e a ocasião adequada para mostrar a sua força, expressando-se de todas as formas, inclusive, poeticamente, na de um “Eu, filho do carbono e do amoníaco”.