Dois jovens brancos, skinheads, atiram uma mulher Rume no rio Elba, a uma temperatura abaixo de zero. A mulher é milagrosamente salva por um agricultor. Um conselho (?) de Defesa Rume exige punição e os jovens são presos, mas o Partido Nacionalista, de extrema direita, os defende e eles ganham a liberdade. Há muitas histórias como essa em Lunik-IX. Uma delas é a dessa mulher de idade madura, branca, olhos azuis, que eles encontram estendendo roupas num varal, ao lado de sua casa e sem muita pressa, como se pretendesse interpor sua figura à passagem dos homens com a parafernália do áudio-visual. Como se assim esperasse ser notada pela excepcional visita de uma rede de televisão da União Européia.
– Vivo aqui há 62 anos, com meu sangue alemão – Ela diz.
– Eu nasci durante a guerra, de minha mãe, que tinha seus 14 anos à época. – Ela agora está terminando de estender as roupas que retira de uma bacia, ao chão.
Na sequência, ela se encontra dentro da casa, na verdade uma cabana de madeira, bem fortalecida, mas com uma cobertura de aparência precária, embora talvez eficiente e que ela própria foi conservando e recuperando com o tempo. Resume-se num vão apertado e com uma perna de L nos fundos, para banho e lavagem de utensílios diversos. Ela está sentada na cama.
– Havia muitos estupros durante a guerra? – É a pergunta malévola do repórter, suspeitoso de que a mulher tenha feito reformulação de passado.
– Ouvi minha avó dizer que aconteciam muitas coisas ruins naquele tempo. Mas nunca me disse se isso aconteceu, ou não, no meu caso. – Responde. Acrescentando, em seguida:
– Pelo que sei, foi uma história de amor.
– Por que diz isso?
– Porque meu pai voltou para buscá-la, segundo tinha prometido. Mas meus avós a esconderam num porão e a disseram morta. Então ele voltou para a Alemanha.
– Você já havia nascido?
– Não. Nasci alguns meses depois, e minha mãe morreu durante o parto. Fui criada pelos meus avós.
A mulher inclina-se um pouco e passa a retirar das gavetas de um móvel ao lado umas poucas lembranças de família, únicos testemunhos de sua história: exibe um lenço que pertencera à mãe. Em seguida, passa a desdobrar com cuidado, com lentidão, uma cópia da carta que alguém letrado, em seu lugar (um certo Josef, a quem Glenn conhecerá em breve), escrevera e remetera à pátria do pai, e a cujo destino ela não soube jamais ter chegado.
– Fiquei aqui. Com meu sangue alemão. – Ela repete.
62 anos depois, a filha é agora uma mulher de razoável estatura física, e com seus olhos azuis difere bastante dos outros Rumes, o que lhe dá credibilidade. Mora só há mais de 30 anos, desde a morte da avó, única familiar que então lhe restara.
Despede-se da equipe encostada no vão da porta, muito pequena para ela, com a mesma e vaga expressão de tristeza e serenidade habituais. Dali, ela parece olhar do alto de uma Baviera impossível para os vales enevoados de sua vida resumida num arrastar de exílio interminável. Não parece ver a realidade miserável do povoado que há diante de si.
Glenn e Sloan caminham um tempo em silêncio.
* De “Os Rumes”, relato documental inédito.